A DESCOBERTA DA RAZÃO
Há uma linha direta de pensadores que nasce em Sócrates e Platão, passa por Santo Agostinho e chega a Descartes. Todos eram racionalistas típicos, convictos de que a razão é o único caminho para o conhecimento. Depois de muito estudar, Descartes concluiu que o conhecimento herdado da Idade Média não era necessariamente confiável. Tal como Sócrates, decidiu criar uma filosofia própria.
Descartes foi o fundador da filosofia moderna. Após a impetuosa redescoberta do homem como centro de tudo (antropocentrismo) e da Natureza no Renascimento, a necessidade de reunir o pensamento contemporâneo em um sistema filosófico coerente voltou a se apresentar. Descartes foi o primeiro a formular um sistema desses. A ele se seguiram Spinoza e Leibniz, Locke e Berkeley, Hume e Kant.
O SISTEMA CARTESIANO
A principal preocupação de Descartes era com aquilo que podemos conhecer, ou, em outras palavras, o conhecimento verdadeiro. Quando se tratava da aquisição do conhecimento verdadeiro, muitos dos contemporâneos de Descartes expressavam um total ceticismo filosófico. Achavam que o homem deveria aceitar o fato de que nada sabe. Mas Descartes não aceitava tal imposição.
Foi na época de Descartes que as novas ciências naturais elaboraram um método científico que propiciaria descrições precisas dos processos e fenômenos naturais. Descartes se perguntou se haveria um método igualmente confiável de reflexão filosófica. O sistema que ele procurava deveria ser uma filosofia construída de modo a incluir todos os aspectos da realidade do mundo e buscar as explicações para todas as questões centrais da filosofia. A Antiguidade teve grandes construtores de sistemas, nas figuras de Platão e Aristóteles. A Idade Média teve são Tomás de Aquino, que tentou construir uma ponte entre a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Em seguida, veio o Renascimento, com a fusão de novas e velhas crenças sobre a Natureza e a ciência, Deus e o homem. Mas foi somente no século XVII que os filósofos passaram a tentar reunir novas ideias em sistemas filosóficos claros e o primeiro a fazê-lo foi Descartes.
PRIMEIRA VERDADE – PENSO, LOGO EXISTO
Descartes era matemático e pretendia usar o “método matemático” até mesmo para filosofar. Estava disposto a provar verdades filosóficas da mesma forma que se demonstra um teorema matemático, ou seja, pelo uso da razão, uma vez que apenas a razão pode nos dar a certeza sobre as coisas, pois acreditava que não é certo que podemos confiar em nossos sentidos. Considerava que somente poderia ser aceito como verdadeiro aquilo que se apresentasse claro e distintamente à razão. Para tanto, Descartes estabelece quatro regras (método cartesiano) por ele aplicadas para fundamentar sua filosofia:
1 – Regra da EVIDÊNCIA: acolher apenas o que aparece ao espírito como ideia clara e distinta;
2 – Regra da ANÁLISE: dividir cada dificuldade em parcelas menores para resolvê-las por parte;
3 – Regra da ORDEM: conduzir por ordem os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para só depois avançar nos mais complexos e compostos e
4 – Regra da ENUMERAÇÃO: fazer revisões gerais de tudo o que foi feito para se ter certeza de que nada foi omitido.
O objetivo de Descartes era chegar a uma certeza sobre a natureza da vida, isto é, em que ela consiste. Ele começou por afirmar que, em primeiro lugar, devemos duvidar de tudo. Isso porque ele buscava um fundamento para seu sistema que fosse absolutamente sólido, acima de qualquer dúvida.
Era importante para Descartes libertar-se de todo o conhecimento herdado antes de construir um sistema filosófico, porque percebeu que tal conhecimento não lhe garantia a construção de um sistema seguro.
O exercício da dúvida cartesiana tornou-se uma referência importantíssima e um clássico da filosofia moderna. Tal exercício foi conduzido pelo filósofo da seguinte maneira:
Dúvida metódica: porque a dúvida vai se ampliando passo a passo, de maneira ordenada e lógica;
Dúvida radical: porque a dúvida vai atingindo a tudo e chega a um ponto extremo em que não é possível ter certeza de nada, nem de que o mundo existe. Como em um jogo, uma brincadeira, Descartes tentou duvidar, até da própria existência. É uma dúvida também chamada hiperbólica, isto é, maior do que o normal, maior do que o esperado, bastante difícil de atingir.
Assim, dizia ele, mesmo o que vemos com nossos próprios olhos está longe da certeza. Sabemos que, às vezes, nossos sentidos nos iludem. Como ter certeza, então, de que não estamos sendo iludidos o tempo todo? Descartes chegou a pensar que poderia ser bastante possível que nossa vida inteira não passasse de um sonho.
“Quando penso bem sobre isso, não encontro uma única característica que marque com certeza a diferença entre o estar acordado e o sonho”, escreveu ele. E prosseguiu: “Como podemos estar certos de que toda a nossa vida não passa de um sonho?”. Duvidava, até mesmo, da existência de seu corpo e das coisas do mundo exterior.
Parecia não haver nada de que pudesse estar certo. Mas Descartes tentou avançar a partir desse ponto zero. Logo se deu conta de que pouca coisa restava além da dúvida. Duvidava de tudo e essa era a única coisa de que tinha certeza. Mas então lhe ocorreu uma ideia: havia, afinal, algo verdadeiro e era o fato de que duvidava. Quando ele duvidava, percebia que estava pensando e, porque estava pensando, tinha de ser verdadeiro que ele existia. Ou, como ele mesmo expressou: Cogito ergo sum, que significa “Penso, logo existo”. Essa conclusão lhe dava garantia de que existia, pois não era possível imaginar alguém tendo um pensamento de dúvida e não existir.
Descartes descobriu, então, que existia porque ele pensava, independentemente de possuir um corpo, algo que ele já tinha posto em dúvida. Assim, chegou à conclusão de que possuir um corpo não faria parte da sua natureza absoluta, isto é, não faria parte da sua descoberta. Sua essência seria a de ser algo pensante, ou como ele mesmo expressou: sum res cogitans, que significa: “Sou um ser pensante”.
CHAUI, Marilena. Convite a Filosofia. Editora Ática, São Paulo, 1997.
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