Segundo texto
Poder e Conflito
INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DO PODER (grupo 1)
Na vida cotidiana fazemos com frequência referência ao poder, aos seus limites e abusos, mas nem sempre estamos de acordo sobre o significado que se deve atribuir à palavra, que parece se aplicar a situações e contextos variados. Falamos do poder dos pais sobre os filhos, daquele do senhor sobre os escravos, assim como do professor sobre seus alunos sem que saibamos como essas realidades se conectam entre si. No meio dessa proliferação de sentidos, muitos pensadores buscaram uma definição geral do poder partindo da ideia de que ele se vincula ao fato de que existem pessoas que são capazes de levar outras a executar ordens e comandos com os quais não estão necessariamente de acordo e para os quais não foi dado nenhum consentimento explícito. Essa maneira de definir o poder, colocando em destaque o fato de que detém poder aquele que faz prevalecer sua vontade sobre a de outros, ajuda a esclarecer algumas questões, mas levanta também dúvidas, o que levou ao aparecimento, ao longo da história do Ocidente, de várias concepções diferentes a respeito do assunto. Algumas dessas concepções serão lembradas a seguir.
Para situar melhor nossa questão, é importante levar em conta que em todas as sociedades históricas encontramos o fenômeno do mando e da obediência. Isso mostra que a questão do poder é fundamental para os que pretendem compreender como vivemos e como poderíamos viver em conjunto. Isso implica em dizer que a investigação sobre a natureza do poder deve ser feita juntamente com aquela sobre o sentido da política, que é o objeto principal do ramo da filosofia – a filosofia política – que se ocupa em compreender os fundamentos da vida comum e não apenas explicar como ela funciona normalmente, que é a matéria das ciências sociais.
Agindo assim, estamos evitando uma abordagem muito genérica de nosso tema, que pode provocar muita confusão conceitual, para nos restringirmos à esfera da política e aos problemas do Estado. É claro que esse recorte não responde a todas nossas dúvidas sobre o tema. Deixamos de lado algumas questões interessantes como, por exemplo, aquela da psicologia dos indivíduos que mandam e daqueles que obedecem, que é muito importante, quando tentamos entender a obediência que alguns povos manifestam a tiranos e ditadores. Mas ganhamos uma clareza na definição de nosso objeto que nos permite avançar com segurança pelo vasto terreno aberto pela investigação sobre a natureza do poder.
Inicialmente o problema do poder expõe a necessidade de pensarmos o papel da violência em nossas vidas e na organização da vida política.
Isso se dá porque tendemos a pensar que poder e violência são a mesma coisa e só obedecemos quando somos forçados. Ocorre, no entanto, que essa identidade entre os dois termos nem sempre é verdadeira e podemos até mesmo dizer que ela quase nunca o é, pois os governantes que contam apenas com a força não conseguem se preservar em seus lugares. Se a violência aparece como um tema ligado àquele do poder, essa relação só pode ser compreendida se levarmos em consideração outras questões como aquelas da legitimidade dos regimes políticos e da liberdade dos cidadãos. Sem levar em consideração esses elementos não somos capazes de entender como funciona efetivamente um regime político.
Dentre os problemas que a filosofia política deve tratar, quando pretende estudar o poder, está aquele do conflito, que é um elemento constitutivo de toda experiência política. (Ver a OP: Indivíduo e comunidade I: conflito). Quando apontamos para esse tema, estamos partindo da constatação quase banal de que não há vida em comum sem que surjam divergências e disputas entre os que dela participam e também com aqueles que são dela excluídos. Essa observação serve para nos lembrar que um dos papeis principais do poder político é lidar com os conflitos seja arbitrando-os, seja impedindo seu aparecimento, seja criando instituições para acolhê-los. A maneira como um regime lida com conflitos diz muito sobre ele. Regimes autoritários tendem a negá-los e tentam evitar que eles coloquem a posição dos governantes em questão.
Regimes democráticos e republicanos buscam regulá-los por meio de leis e de instituições, mas não deixam de temê-los, pelo medo de que a divisão do corpo social possa ser uma ameaça para a sobrevivência do próprio Estado. Na verdade, desde a Antiguidade os conflitos foram temidos pelos pensadores políticos, que sempre viram na exacerbação das disputas internas um risco ainda maior do que as guerras com os vizinhos. Na Idade Média, a paz era considerada o bem maior da vida pública, postura que se conservou até o Renascimento, quando a maior parte dos filósofos enxergava na “luta de facções” um perigo enorme para a vida política. Mesmo na modernidade esse medo não se dissolveu, mostrando que a associação entre o tema do poder e aquele do conflito sempre fez parte do pensamento político. Mas o medo dos conflitos também aponta para a necessidade de se encontrar um terreno comum de entendimento, um Bem comum, que por sua natureza seria capaz fazer com que as pessoas superassem os conflitos, para criar algo superior ás vontades particulares, que quase sempre estão na raiz das disputas entre os indivíduos. Essa ideia serviu para mostrar que um dos parâmetros para se identificar um bom governo é sua capacidade de privilegiar os interesses comuns, promovendo assim um bem para todos, em detrimento das políticas que visam a satisfazer os desejos de apenas pequenas parcelas da população e que, no mais das vezes, colocam a unidade do corpo político em perigo.
Escolhendo tratar o problema do poder do ponto de vista da política não se está negando seus outros significados, e nem a possibilidade de encontrar nas outras esferas da vida social fenômenos correlatos àqueles que os filósofos estudaram na esfera do Estado. Trata-se apenas de uma escolha metodológica seguida por muitos pensadores e que evita os riscos de uma abordagem que pode se perder em abstrações e generalidades, que nada nos ensinam sobre os fatos que observamos em nossas vidas. (ver as orientações contidas na OP. Indivíduo e comunidade I: conflito)
Texto: “O poder não necessita de justificação, sendo inerente à própria existência de comunidades políticas; o que realmente necessita é legitimidade. O emprego das duas palavras como sinônimo é tão enganoso e confuso quanto a comum identificação entre obediência e apoio. O poder brota onde quer que as pessoas se unam e atuem de comum acordo, mas obtém sua legitimidade mais do ato inicial de unir-se do que de outras ações que se possam seguir”. Hannah Arendt. Da Violência. Trad. José Volkmann.
Explicação: No texto a autora sublinha a importância da afirmação da legitimidade do poder. Ou seja, para agir sobre a vida dos cidadãos, o poder precisa ter sua origem reconhecida por todos os que vivem numa determinada sociedade. Não basta estar de acordo com as leis, pois essas podem ser derivadas apenas da vontade do governante. A legitimidade nasce da concordância com as leis e com o fato de que essa concordância foi manifestada no momento em que elas foram concebidas. Isso ocorre, por exemplo, quando uma assembleia constituinte eleita por regras claras redige a Constituição de um país. À luz dessas considerações discuta os seguintes problemas:
1. Quando o Estado usa seu poder para praticar alguma forma de violência contra um cidadão, ele pode fazê-lo de forma legítima?
2. Poder e violência sempre andam juntos?
3. Mostre, segundo sua opinião, usando fatos da atualidade, quando o poder está sendo usado corretamente e quando deriva de um abuso.
A POLÍTICA NA ANTIGUIDADE (grupo 2)
Muitos das palavras que empregamos, quando nos interrogamos sobre o poder nos foram legadas pelos gregos. A própria ideia de que a política define um campo específico da ação humana foi proposta pela primeira vez pelos filósofos helênicos, que compreenderam que a maneira como se organizava a vida coletiva na Grécia do século V a.c era muito diferente da forma como viviam os outros povos conhecidos.
Em primeiro lugar, havia o reconhecimento que uma cidade só pode pretender ser autônoma em relação às outras se for responsável por suas próprias leis. Em segundo lugar, os gregos descobriram que os diversos regimes possíveis exigiam formas diferentes de organização das cidades e transformavam a natureza dos homens. Ao mesmo tempo em que apontavam para a originalidade da experiência que estavam vivendo, faziam uma crítica violenta dos regimes que não reconheciam a possibilidade de seus cidadãos agirem na arena pública. Os gregos não eram todos adeptos da democracia, o regime do mando do povo, mas tinham horror ao despotismo, o regime dos povos orientais, que não reconhecia a diferença, segundo eles, entre a esfera da política e a esfera da casa. Ter afirmado essa diferença foi um fator fundamental para o tratamento que diversos filósofos deram ás questões que nos interessam.
PLATÃO (428 a.c- 347 a.c).
Platão foi o primeiro grande pensador a legar para a posteridade uma série de diálogos nos quais foram desenvolvidos alguns dos pilares fundamentais da filosofia política do Ocidente. Em seu diálogo A República, ele tenta descobrir o que é a justiça e qual é a organização política mais justa para se viver. Depois de analisar as concepções mais influentes, na opinião de seus concidadãos, a respeito do problema da justiça, ele procura mostrar que só em um regime ideal, construído segundo os preceitos, que procura explicitar ao longo do texto, se poderia encontrar a justiça em sua plenitude. Nesse regime, os governantes deteriam o poder em razão de seu saber e isso levou-o a concluir que a filosofia deveria governar. Não se tratava de afirmar que os filósofos deveriam governar por pertencerem a um grupo social específico, que se dedicava à busca da sabedoria e à sua transmissão, mas sim que o regime deveria ser construído segundo um saber, que se identifica com a compreensão do que é o Bem, princípio do qual derivavam todas as outras coisas. Em todos os outros regimes existentes, como a realeza, a aristocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania, os homens se identificam e agem em conformidade com os princípios desses regimes. Na oligarquia, os governantes agem em função do poder que a riqueza lhes confere, como na democracia, é a busca por uma igualdade generalizada que move o homem democrático. No regime ideal, os homens se identificam com a filosofia e com a justiça e, por isso, são capazes de escapar das limitações de todos os outros regimes. Platão estava consciente das dificuldades para se construir um regime ideal, governado por sábios, e explicitou seu ponto de vista em diálogos como O Político e As Leis. Mas isso não foi suficiente para que ele abandonasse suas convicções e a ideia de que a realização plena das capacidades políticas dos homens só se dá quanto são deixadas de lado as particularidades dos regimes parciais.
Encontra-se na OP. Indivíduo e comunidade II. Lei e justiça uma discussão interessante sobre a origem da questão da justiça entre os gregos.
Texto: “Ora Glauco, recordemos os pontos em torno dos quais estamos de acordo para que uma Cidade seja eminentemente bem governada: comunidade das mulheres, comunidade das crianças e de todo o processo educativo; ocupações comuns na guerra como na paz; o governo deve estar nas mãos dos cidadãos, que mostraram ser os melhores tanto na filosofia quanto na guerra.(...). Eis outros pontos sobre os quais estamos de acordo: os chefes, uma vez designados, conduzirão os soldados para instalá-los nas residências sobre as quais falamos anteriormente e onde nenhum deles é proprietário de nada, mas nas quais tudo é comum. Além disso, estamos de acordo, acredito eu, se você se lembra, sobre quais devem ser seus bens mobiliários. – Sim, disse ele, eu me recordo que para nós nenhum desses homens deve possuir bens, que de fato pertencem aos outros, mas que assim como os guerreiros e os guardiões, eles devem receber dos outros, como salário por sua função de guarda, o necessário para a subsistência anual, sendo seu dever velar sobre eles mesmos e sobre a Cidade”. Platão. A República. VIII, 543.
Explicação: Nesse texto, Platão recapitula alguns pontos importantes de sua argumentação a respeito da estrutura da cidade ideal e do lugar que nela devem ocupar os que detém o poder. Deve-se notar que para ele a posse do poder supremo na cidade deve excluir a posse de bens materiais. Os governantes devem saber combinar a força, principalmente na guerra, com a filosofia, realizando o encontro entre saber e poder. A autoridade dos governantes deriva do acordo entre o poder que detém e o poder que exercem.
Questões.
1. Quais dos elementos da descrição da cidade ideal são os mais importantes para sua criação?
2. Como podemos nos servir de Platão para pensarmos a concentração de poder nas mãos dos que detém as riquezas, que observamos em várias sociedades contemporâneas?
3. Quais elementos dentre os expostos nos textos lhe parecem impossíveis de se realizar em sociedades como as nossas?
Exercício.
1.Procure imaginar uma sociedade ideal e analise se seria possível construí-la nos dias de hoje, levando em conta os fatores econômicos, sociais, políticos e morais.
2. Pesquise para saber se já houve no Brasil, tentativas de construir sociedades baseadas em utopias.
ARISTÓTELES (385 a.c- 322 a.c). (grupo 3)
Discípulo de Platão, Aristóteles se interessou como ele pelas características do regime ideal, mas investigou a mudança dos regimes de outro ponto de vista. Como seu mestre, ele admitia que a transformação dos regimes, a passagem de uma realeza para uma aristocracia, por exemplo, era um fato natural. Mas, contrariamente a Platão, Aristóteles não acreditava que as mudanças seguiam sempre a mesma ordem, que acabaria na degeneração final representada pela tirania. As mudanças eram naturais, mas podiam ocorrer em todos os sentidos. Além disso, ele constatava que na realidade de seu tempo os regimes mais corriqueiros eram a democracia e a oligarquia, fato que o levava a afirmar que a distinção essencial no interior de uma cidade, para se compreender a organização do poder, era aquela entre ricos e pobres. Aristóteles se preocupou também em definir o que era um cidadão, sobretudo diante do fato que a afirmação corrente segundo a qual era cidadão aquele que era filho de pais cidadãos nem sempre correspondia à realidade.
Aristóteles não imaginava como seu mestre um mundo constituído por ideias separadas da realidade empírica, que seria apenas uma forma degradada da verdadeira realidade. Por isso, ele adotou um ponto de vista que muitos chamaram de realista, para investigar a política.
Encontramos um exemplo desse procedimento em seu livro A Política. Cada regime é analisado segundo suas características próprias e o filósofo reconhece que muitas vezes as formas existentes são mais complexas do que os modelos imaginados pelos pensadores de sua época.
Essa postura diante da realidade permite que ele analise a tirania de um ponto de vista inovador. Aristóteles não era favorável a esse regime, mas isso não o impediu de tratá-lo como um regime qualquer. Nessa lógica, até mesmo um tirano pode aprender a conservar seu poder, se não
se deixar levar pelos excessos e pela violência. No polo oposto àquele da tirania se encontrava a república temperada, que é o melhor regime existente, por ser capaz de regular suas ações pelo meio termo, que também orienta a vida moral dos cidadãos. Essa concepção da política foi notavelmente influente nos séculos seguintes estando presente tanto entre os romanos quanto entre os medievais, que herdariam a ideia do bom governo e a transformariam à luz das crenças religiosas da cristandade.
Texto: “Devemos dar à noção de ‘bom governo’ um duplo sentido: é de um lado a obediência às leis em vigor, e de outro, a excelência das leis em vigor observadas pelos cidadãos, pois podemos também obedecer leis que são ruins”. Aristóteles. A Política. IV, 8, 1294 a 1.
“A causa universal e mais importante que cria entre os cidadãos uma disposição de alguma maneira favorável à mudança, deve agora ser estabelecida: é aquela sobre a qual já falamos. De um lado, aqueles que aspiram à igualdade suscitam revoltas, se eles acreditam que são desfavorecidos, quando são iguais dos que possuem vantagens excessivas, e, de outro lado, aqueles que desejam a desigualdade e a superioridade se revoltam também, se eles supõem que apesar de sua desigualdade eles não possuem uma parte maior que os outros, mas uma parte igual ou menor”. Aristóteles. A Política. V,2, 1302 a 20.
Explicação: No primeiro texto o autor faz menção à noção de “bom governo” que terá uma grande influência na maneira como muitos pensadores posteriores pensarão a questão do poder e de seu uso correto. O foco se encontra nas leis e em sua qualidade e não em fatores impossíveis de serem identificados na vida cotidiana dos Estados. No segundo texto, Aristóteles chama a atenção para o papel fundamental que a noção de igualdade tem na vida política. Procedendo dessa maneira, ele descarta também a ideia que as mudanças ocorridas nas cidades são fruto de processos naturais, que não precisam da ação humana para se realizar. Se é natural que os regimes mudem, é possível encontrar razões que nos ajudam a compreender as lutas pelo poder.
Questões e exercícios.
1. Por que é tão importante ser igual aos outros quando se é cidadão da mesma cidade?
2. A seu ver, os regimes descritos pelos pensadores da Antiguidade – realeza, oligarquia, aristocracia, democracia, tirania, etc.. – são todos iguais?
3. Um bom governo pode ser injusto e violento com seus cidadãos e ainda ser legítimo?
A MODERNIDADE E A QUESTÃO DO CONTRATO. (grupo 4)
Um aspecto importante do pensamento da Idade Média foi a síntese realizada por autores como Tomás de Aquino (1225-1274) entre os valores cristãos, expressos nos textos bíblicos, e algumas concepções herdadas de Aristóteles. Em que pese, no entanto, a influência do aristotelismo, prevaleceu nos autores medievais, desde Agostinho (354-430), a afirmação da preponderância do modelo de vida dedicada à contemplação religiosa, por oposição à vida ativa (dedicada à política). Essa maneira de compreender a vida pública acabou rebaixando-a a um patamar inferior àquele dos homens dedicados à vida religiosa e à Igreja. Os homens realmente virtuosos deveriam se preocupar com sua salvação e com o bem do próximo, mas deviam evitar ao máximo se misturar aos negócios públicos, fonte frequente de corrupção moral e que dificultavam ao extremo a vida dos cristãos interessados em seguir os ensinamentos dos Evangelhos.
A partir do Renascimento, que os historiadores costumam situar entre o século XIV e o século XVI, a recuperação de textos da Antiguidade, por escritores como Petrarca (1304-1374), serviu para colocar por terra os cânones dos se preocupavam com sua salvação e com o bem do próximo, mas pensavam ser seu dever evitar ao máximo se misturar aos negócios públicos, fonte frequente de corrupção moral. Um dos feitos principais do resgate dos valores do mundo antigo foi o fato de que a política readquiriu sua dignidade e voltou a estar no centro das preocupações de muitos pensadores. Com o aparecimento das nações modernas e de Estados fortes, livres do mando direto da Igreja, muitas questões tiveram de ser tratadas levando em conta a mudança no panorama político europeu e as consequências do abandono da ideia de que todo poder vem de Deus. Não se tratava de negar a importância da religião para a política e nem de se insurgir contra as verdades reveladas pelo Cristo. A pergunta que precisava ser respondida dizia respeito à origem e fundamento do poder político em sociedades que não tinham a pretensão de serem formas universais de governo, como a Igreja e o Império, e necessitavam afirmar sua identidade.
Diante desse quadro, o problema da soberania, ou seja, aquele da escolha da autoridade suprema, que não depende de outros para existir, passou a ocupar o centro do debate entre os filósofos políticos. Jean Bodin (1529-1596) afirmava que a soberania deve ser una e indivisível e que só assim uma comunidade pode reconhecer um poder que lhe confere identidade e estabilidade. Essa unidade deve ser expressa na forma de leis, que por sua vez constituirão a face dos diversos regimes possíveis. Em qualquer caso, a soberania de um Estado só se afirma se ele se transforma em um Estado de Direito. Essa maneira de apresentar o poder do Estado e a questão da soberania levou muitos intérpretes a associar o nome de Bodin ao surgimento das monarquias absolutas modernas. Mais importante, no entanto, do que discutir as preferências políticas do autor é reconhecer que ele formulou de maneira límpida os termos de um problema que desde a Idade Média preocupava os juristas, mas que só se tornou evidente com o aparecimento das nações modernas.
Um tema muito próximo daquele da soberania e que também ocupou um lugar importante na modernidade foi o da origem do Estado. Na Antiguidade, a afirmação da condição política do homem era o ponto de partida para a abordagem dessa questão. Aristóteles, por exemplo, partia da constatação da naturalidade do mando do pai sobre os filhos, para traçar a genealogia das formas de poder. A lei natural era o fundamento último para todo ordenamento humano, o que fazia das leis criadas pelos homens (nomos) algo necessário, mas que dependia de uma ordem transcendente para se afirmar. (Ver a esse respeito as orientações da OP –Lei e Justiça).
A principal mudança ocorrida na modernidade é que o debate sobre a origem do Estado passou a incluir uma nova possibilidade, que já havia sido esboçada na Antiguidade por alguns sofistas, que consideravam a lei como fruto exclusivo da vontade dos homens. Para os modernos, os homens não deixam, é claro, de estar submetidos às leis naturais sob vários aspectos, mas quando se trata de escolher a maneira como querem viver juntos, eles podem fazê-lo tendo por referência um contrato inicial, que deve contar com um acordo sobre os principais pontos que irão estruturar as comunidades políticas. Segue dessa afirmação que o poder político é sempre um artifício, uma criação dos homens, da qual eles necessitam para viver juntos e evitar que os conflitos destruam a possibilidade de uma vida sem perigos. Dessa afirmação da importância do contrato nasceram muitas das filosofias mais importantes representadas nas obras de filósofos como Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e muitos outros.
MAQUIAVEL (1469-1527)
Com Maquiavel começou uma transformação do pensamento político cujas consequências não se esgotaram até hoje. Seguindo, no tocante à forma, o modelo de textos medievais, que eram chamados de “espelho dos príncipes”, Maquiavel criou uma nova maneira de se pensar o poder, que está presente em seu livro mais famoso O Príncipe. Uma característica importante dos tratados que ele parecia imitar é que eles aconselhavam os governantes a praticar todas as virtudes cristãs, para obter êxito em suas ações. Maquiavel não pretendia desqualificar a ética, como afirmaram muitos de seus críticos, mas simplesmente mostrar que a principal preocupação de um governante é adquirir e conservar seu poder, e que ele não consegue sucesso nessa empreitada se se dedicar apenas à prática das virtudes cristãs. Para ele, a ética e a política possuem relações, mas não devem ser confundidas. Um governante que pretender, por exemplo, nunca ofender seus súditos, acabará sendo considerado fraco e perdendo uma parcela de seu poder. Um governante temido, mas que sabe usar da clemência na hora certa, continuará a governar, mesmo se não for muito amado pelos habitantes de sua cidade. A principal conclusão que devemos tirar da posição defendida pelo pensador italiano é que a política tem um campo de existência próprio, com suas determinações e suas zonas obscuras, que demanda um saber diferente daquele da ética, para ser compreendido. Para estudá-la em toda sua complexidade é preciso observar variáveis muito diferentes daquelas escolhidas pelos pensadores medievais.
Um primeiro ponto fundamental da filosofia de Maquiavel é o fato de que ele acredita que toda cidade está dividida quanto à maneira como as pessoas enxergam o poder. De um lado estão os que querem ocupá-lo e lutam por isso. Muitos dos temas tratados pelo pensador estão focados nesse grupo de homens e mulheres que querem comandar os outros. O outro grupo, formado pela maioria das pessoas, e que ele chama de “povo”, por oposição aos “grandes” do primeiro grupo, não deseja se apossar do poder, mas também não quer ser oprimido por ele.
Essa assimetria entre os grupos faz com que a arena política esteja sempre conturbada pelas disputas e pelos conflitos, uma vez que não basta ocupar o poder. Para mantê-lo é necessário continuar a agir corretamente em todas as situações, pois o governante é atacado o tempo todo tanto por seus concorrentes quanto pelos que temem a opressão.
Isso não quer dizer que Maquiavel temesse os conflitos e seus efeitos na cena pública. Em seu livro Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ele trata diretamente do tema afirmando que foi graças aos conflitos que Roma se tornou uma potência (Discursos, Livro I, 4). O pensador não pretende dizer que todos os conflitos são benéficos para a cidade, mas sim que não existe comunidade humana que não esteja submetida a eles e que, sendo naturais, não são necessariamente ruins para o corpo político. Nesse ponto, ele introduz uma nova divisão para mostrar que os conflitos romanos foram positivos para a cidade, porque ela estava capacitada para acolhê-los em suas instituições e assim dar vazão aos sentimentos populares que estão presentes na arena pública. Conflitos que apenas afirmam a divisão da cidade sem expressar a liberdade de suas instituições podem ser extremamente danosos para o corpo político. Conflitos que revelam as divisões internas da sociedade, mas permitem que ela se desenvolva e enfrente os novos desafios são fundamentais para a afirmação de sua potência.
Maquiavel acreditava que o melhor regime possível era o republicano, que assegurava a liberdade dos cidadãos e sua participação nos negócios da cidade. Ao mesmo tempo, ele afirmava que só nessas condições um povo pode construir uma sociedade rica e poderosa. As tiranias são o lugar da violência e da força, mas não do poder, pois estão nos limites da política e não podem durar e nem realizar grandes feitos. Mas as repúblicas também correm riscos, pois estão sujeitas ao que o estudioso italiano Genaro Sasso denominou “o paradoxo da potência”. Analisando a história de Roma, Maquiavel concluiu que, sua liberdade, e capacidade de lidar com os conflitos internos, criou as raízes de sua potência, mas ao mesmo tempo levou-a a um expansão desmesurada de seu território e de seu poder externo, o que acabou por destruir suas instituições de base.
Ao analisar o poder e seus efeitos, Maquiavel descobriu que não existem regras para a ação, que servem para todas as situações. Os homens precisam conhecer a história e também as forças de seu tempo, mas podem ser derrotados por circunstâncias que lhes escapam inteiramente.
A essa presença da contingência na política Maquiavel chamou de Fortuna, usando o nome da antiga deusa romana. Essa noção é importante porque nos lembra que o que um governante precisa fazer para manter seu poder não é o mesmo que pregavam os “espelhos dos príncipes” e nem mesmo o que pregavam alguns autores da Antiguidade. Ele recorre assim ao termo latino virtù para designar essa capacidade que os grandes homens de ação têm de saber se locomover de forma correta na hora adequada na cena pública. Não se trata de algo que se pode aprender com um manual, mas de uma habilidade que é da ordem da prática e da liberdade, mas que não se confunde nem com as virtudes cristãs e nem com a prudência grega. De certa maneira, a virtù é uma noção que se liga diretamente ás ações de conquista e manutenção do poder e, por isso, sua compreensão muda aquela da própria natureza da política.
Texto: “Resta agora ver como o príncipe deve tratar seus súditos e seus amigos. Como sei que muitos escreveram sobre isso, temo, escrevendo eu também, ser considerado presunçoso, porque eu me distancio, sobretudo na discussão dessa questão, do caminho seguido pelos outros. Mas minha intenção sendo a de escrever alguma coisa útil para meus leitores, pareceu-me mais pertinente me conformar com a verdade efetiva das coisas do que à imaginação que delas temos. Muitos imaginaram repúblicas e principados que nunca existiram. De fato, há uma tal distância entre a maneira como vivemos e aquela como deveríamos viver, que aquele que deixa o que se faz pelo que se deveria fazer, aprende muito mais a se destruir o que a se preservar”. Maquiavel. O Príncipe. Cap XV.
Explicação: Nesse texto Maquiavel coloca as bases de seu realismo político. O fundamento de sua filosofia se encontra na distinção entre o objeto da vida política tal como ela de fato existe – a conquista e a manutenção do poder –, e as formas que imaginamos para torná-la melhor.
Dessa maneira, ele mostra que o estudioso da política deve se concentrar nos acontecimentos reais, tais como vistos por nós e relatados pela história, para adquirir um verdadeiro saber sobre o poder.
Questões.
1. Como Maquiavel veria as utopias de nosso tempo? Identifique quem são nos nossos dias aqueles que não levam em conta a “verdade efetiva das coisas” ao analisar a política.
2. Qual deve ser para Maquiavel o principal objetivo do governante?
3. Na lógica do autor é possível sonhar com um novo mundo e manter o poder?
Exercício. A partir da leitura de um jornal, ou revista atual, procura analisar o comportamento de um homem público à luz do texto citado.
THOMAS HOBBES (1588-1679). (grupo 5)
Hobbes conheceu em seu tempo os efeitos da Revolução, que terminou com a execução do rei Carlos I, e as profundas transformações da cena política inglesa, que acabariam por reforçar notavelmente o poder do parlamento. Esses fatos foram decisivos para sua obra, assim como o contato com as ciências nascentes, que o levariam a tentar constituir para a política um saber que tivesse o mesmo grau de certeza dos novos saberes. Esse esforço resultou em uma obra vasta e diversificada cujo ápice se encontra em seu livro Leviatã.
Nesse tratado o autor se dedica em primeiro lugar a estudar a natureza humana e sua condição original, que ele chama de “estado de natureza”. Analisando o que seria o homem se não existissem as sociedades organizadas, ele chega à conclusão de que os homens são naturalmente egoístas e não buscam voluntariamente a cooperação. Como são dotados de razão, os homens são capazes de calcular o que é mais proveitoso e útil para suas vidas, mas isso não é suficiente, segundo o filósofo inglês, para que eles estabeleçam regras para uma vida em comum. Estudando a condição do homem natural, Hobbes chega à conclusão de que é preciso encontrar o motor para a formação das sociedades políticas em sentimentos diferentes daqueles que naturalmente movem a todos que são o desejo de glória e a vontade de obter bens que nos são úteis. Esses sentimentos são importantes, mas eles não conduzem os indivíduos para fora da esfera de seus desejos. Ao contrário, eles precisam da exclusão dos outros, pelo menos de parcelas significativas dos membros de um mesmo grupo, para se realizar.
Nessa lógica a única paixão que temos em comum no estado de natureza é o medo da morte violenta, o pavor de não ser capaz de sobreviver à luta contínua entre todos os homens. Hobbes acredita que para encontrar um fundamento sólido para o poder e garantir sua duração é preciso partir dessa paixão extrema: o medo. Uma vez que reconhecemos essa “igualdade” no temor, podemos abdicar, todos ao mesmo tempo, de nosso direito à autodefesa em proveito de um ente, que une a multidão em uma única pessoa. O filósofo resume esse passo dizendo: “Tal é a geração desse grande Leviatã, ou, para falar com mais respeito, desse deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e nossa proteção”. (Leviatã, II, cap XVII).
Esse grande soberano deve nos garantir a segurança, mas ele mesmo não faz parte do contrato. Ele foi criado por nós, artificialmente, para nos assegurar que não mais temos de temer uns aos outros, mas tornou-se um ente autônomo, detentor de um grande poder. Uma das dúvidas comuns sobre o pensamento de Hobbes é quanto à natureza desse poder imenso concentrado nas mãos do Estado, ou de um só monarca. Não pode ele se transformar em algo terrível a partir do momento que não é limitado nem mesmo pelo contrato que o instituiu? Não há como negar a pertinência dessas dúvidas, mas, para compreender como o autor lidava com essas objeções, é preciso lembrar que o Leviatã perde muito de sua força se ele destrói aquela de seus súditos. Podendo fazer tudo o que quiser, ele não tem razão alguma para abusar de seu poder.
Esses argumentos não são suficientes para afastar todas as dúvidas dos leitores quando à natureza do poder do Leviatã, mas permitem compreender que uma das principais funções do soberano é justamente nos retirar do estado de natureza no qual prevalece a guerra de todos contra todos, para nos fazer viver em uma sociedade de paz e segurança. Só uma força enorme, acredita Hobbes, pode realizar esse feito. Ao mesmo tempo o soberano deve levar em conta que o direito de natureza é aquele que nos diz que devemos procurar por todos os meios fugir da morte violenta e garantir nossa sobrevivência. Ao criarmos o Estado, tudo se passa como se essa função, – garantir nossas vidas contra os ataques dos outros –, passasse a ser o direito e o dever do soberano. Para Hobbes seu poder é enorme, porque é imensa sua obrigação para com seus súditos.
JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778)
Rousseau foi ao mesmo tempo filho do século das Luzes, época que depositou grandes esperanças no progresso da humanidade a partir do uso da razão, e um de seus críticos mais argutos. Contrariamente à Hobbes, Rousseau acreditava que o homem no estado de natureza era um ser meigo e desprovido de instintos agressivos. Na verdade, ele acreditava que os homens, quando vivem junto da natureza não necessitam muito uns dos outros, salvo para perpetuar a própria espécie. A necessidade, no entanto, pode levá-los a perder a condição vantajosa da solidão original para forçá-los a um convívio, com o qual sairão perdendo. Essa passagem do estado natural para o estado social não se faz abruptamente. No longo processo de degenerescência, os homens desenvolvem a linguagem, que altera para sempre a relação entre eles.
Esse passo é fundamental para a compreensão de como no processo de formação das sociedades é possível chegar a um contrato social, que é o estágio final do longo caminho da natureza em direção da criação do Estado.
Na caminhada em direção à formação das sociedades políticas, descrita no Discurso sobre a origem da desigualdade, o aparecimento da propriedade privada é um momento decisivo. Segundo o filósofo não há nada de natural no fato de que alguém delimite um espaço de terra e declare que ele lhe pertence por inteiro. A partir desse ponto, as diferenças de riqueza acabam por diferenciar os homens também do ponto de vista do poder, que no estado primitivo era quase o mesmo para todos e se resumia na capacidade de governar suas próprias vidas. A passagem do estado de natureza para o estado social é descrita por Rousseau como um processo de corrupção da natureza humana que, uma vez iniciado, não pode mais ser detido. Uma vez perdida a transparência original dos sentimentos e a liberdade que experimentamos quando vivemos na natureza, somos incapazes de impedir o movimento que pouco a pouco solapa a base do estado de natureza.
Ao final da instalação da corrupção no seio das comunidades, que foram sendo criadas ao longo do tempo, depois que o homem perdeu sua inocência original, só a formação de uma comunidade política baseada na igualdade e na liberdade pode garantir aos homens uma vida menos terrível do que aquela que ele conheceu nos estágios anteriores. O fundamento do contrato é a vontade geral, que para Rousseau nos ajuda a compreender a natureza do poder soberano, que não pode ser dividido, nem alienado. Contrariamente a Hobbes, no entanto, o poder soberano encontra seus limites justamente no fato de que ele só pode pedir de seus súditos aquilo que foi acordado no contrato e que é essencial para o interesse comum. Para além desses limites cada cidadão conserva intacto seu direito às suas coisas e à sua liberdade.
Texto: “O homem nasceu livre e por toda parte se encontra a ferros. Um acredita ser o senhor dos outros e não deixa de ser mais escravo que os outros. Como essa mudança aconteceu? Eu ignoro. O que pode torná-la legítima? Acredito poder responder a essa questão”. Rousseau. Do Contrato Social. Livro I, cap 1
“Se o interesse comum é o objeto da associação, é claro que a vontade geral deve ser a regra das ações do corpo social. Este é o princípio geral que eu estabeleci. (...). Por qualquer caminho que nós retornamos ao princípio chegamos sempre à mesma conclusão: a saber, que o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade de direito, que eles se engajam todos sob as mesmas condições e devem gozar das mesmas vantagens”. Rousseau. Do Contrato Social (Primeira versão). Cap VI.
“O mais forte não é jamais suficientemente forte para ser sempre o senhor, se ele não transforma sua força em direito e a obediência em dever”. Rousseau. Do Contrato Social. Livro I, cap 3.
Explicações: Rousseau combate no último trecho a ideia muito comum em sua época, mas também na nossa, de que a origem de todo poder é a força. Ao contrário, o poder só é legítimo se retira sua capacidade de ação do consentimento explícito dos membros do corpo político. Essa reunião dos membros do corpo político não é, no entanto, um simples agregado de vontades particulares, mas uma vontade, a vontade geral, que não representa a soma dos interesses particulares, mas justamente aquilo que a transcende e pode ser considerado como um interesse comum. É nesse sentido que a vontade geral é o fundamento de todo Estado baseado na igualdade de seus cidadãos perante a lei e na liberdade de participação nos negócios públicos.
Questões.
1. Para Rousseau um regime cheio de desigualdades entre seus cidadãos, como observamos em muitas sociedades atuais, pode ser legítimo, ou seja, estar de acordo com a vontade geral, que é para ele o fundamento do poder?
2. Poder e violência podem ser considerados a mesma coisa na lógica do autor?
3. Em nossos dias você acredita que ainda podemos falar de interesse comum, à luz do que Rousseau afirma?
Exercício. Descreva quais são a seu ver os termos principais do “contrato social” que rege nossas relações no espaço da escola atual.
O MUNDO CONTEMPORÂNEO: DEMOCRACIA, TOTALITARISMO, JUSTIÇA. (grupo 6)
Embora o termo contemporâneo costume ser empregado para os acontecimentos do século XX, podemos recuá-lo até o século XIX, entendendo que foi nesse momento que se definiram as principais características das sociedades ocidentais, que no curso de duzentos anos viram nascer o regime democrático moderno e os governos totalitários. Foi no século XIX, com efeito, que se consolidou a herança republicana da Revolução Francesa, ao mesmo tempo em que John Stuart Mill (1806-1873) dava um passo decisivo na consolidação do pensamento liberal ao insistir que o utilitarismo de Bentham (1748-1832) assim como o pensamento de Saint-Simon (1760-1925) não davam conta da complexidade das realidades sociais. Muito influenciado pelo empirismo de Hume (1711-1776), Mill foi um grande adepto da democracia parlamentar e da distribuição do poderes que ela implica e ao mesmo tempo um defensor incansável da liberdade dos indivíduos que, segundo ele, deve possibilitar a cada um escapar de todos os constrangimentos que não são absolutamente necessários para a existência das sociedades políticas. Sua obra Sobre a Liberdade é um verdadeiro pilar do liberalismo moderno e de seus valores. Sua insistência na defesa das liberdades individuais o levou a uma oposição tanto aos governos autoritários quanto à tirania de uma maioria, que poderia acabar por abolir as diferenças que necessariamente existem entre indivíduos autônomos.
Em outro terreno o pensamento utópico de vários matizes se incorporou á história fazendo surgir desde projeto de sociedades sem Estado, como no caso dos pensadores anarquistas, até versões importantes da história como lugar da afirmação de uma necessidade, que nos conduziria ao fim da própria história. O socialismo de Marx (1818-1883) foi sem dúvida a corrente de pensamento mais importante nesse terreno
e levou a uma compreensão diferente tanto da natureza do poder quanto do conflito. Para o pensador, as sociedades são sempre atravessadas por conflitos que refletem a distribuição do poder entre as diversas classes sociais. Para ele, o poder é sempre poder econômico, derivado da posse dos meios de produção e é esse desequilíbrio na base econômica das sociedades que está na raiz das outras formas de desigualdade, inclusive aquelas observadas no terreno da política.
Os acontecimentos terríveis da primeira metade do século XX, – as duas grandes guerras e o assassinato de milhões de pessoas nos campos de concentração de várias nações –, marcaram o aparecimento de problemas, que não podiam ser estudados com os conceitos herdados das diversas tradições do pensamento político. Talvez o mais importante tenha sido o surgimento de regimes, classificados como totalitários, cujo maior exemplo foi o regime nazista da Alemanha, cuja maneira de lidar com os conflitos e de estruturar o poder, divergiam profundamente do que até então fora conhecido até mesmo nas tiranias e nos despotismos diversos. Uma das características mais importantes desses regimes é o fato de que eles destroem completamente as instituições políticas e sociais, isolando os homens uns dos outros e contribuindo com isso para o desaparecimento da política em todas suas formas. No tocante ao poder, os regimes totalitários recorrem ao terror, como forma de evitar qualquer ameaça ou dissidência. O terror, aliado à solidão dos habitantes do país, associado a uma ideologia que procura fornecer uma explicação total dos motivos que levaram os governantes a ações tão extremas quanto a aniquilação de milhões de pessoas, formam a base dos regimes totalitários. A obra de Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo constitui um material essencial para entender o significado desses acontecimentos para a filosofia política.
Na segunda metade do século XX, os trabalhos pioneiros de Hannah Arendt (1906-1975) e de Claude Lefort (1924-) sobre a natureza dos regimes totalitários e sobre a democracia e seus fundamentos acabaram influenciando uma retomada de temas ligados à tradição republicana, que repercutem até hoje nos debates sobre o republicanismo em vários países. Entre os temas que ganharam destaque nas últimas décadas entre os pensadores políticos estão o da liberdade política entendida como participação na vida pública, o papel da virtude na ação dos diversos atores políticos e a crítica à ideia de que a democracia é um regime destinado a provocar a apatia dos cidadãos. No terreno mais próximo da tradição liberal, a obra de John Rawls (1921-2002) levou a uma renovação espetacular do pensamento político. Crítico do utilitarismo, que desde o século XIX dominava uma parte importante do pensamento político anglo-saxônico, Rawls retornou à filosofia de Kant e à teoria do contrato, para afirmar que uma sociedade livre deve necessariamente buscar a justiça como um “ideal social”, voltado para uma repartição justa dos direitos e deveres, mas também das vantagens sociais. Para fundamentar essa busca, Rawls propõe dois princípios, que devem estar na raiz das principais instituições constitutivas de uma sociedade livre e que ele chama de “estruturas de base”. O primeiro princípio afirma que cada membro de uma dada sociedade “deve ter um direito igual ao sistema o mais amplo possível de liberdades de base iguais para todos e que seja compatível como o mesmo sistema para todos”. Já o segundo princípio, que teve um grande impacto sobre o debate em torno do significado da justiça, sustenta que no tocante as desigualdade sociais e econômicas, devemos em primeiro lugar cuidar para que elas sejam organizadas de tal forma que elas tragam aos mais desfavorecidos as maiores vantagens, ao mesmo tempo em que garante o acesso de todos aos cargos e vantagens do sistema social.
Texto: “A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas à imagem da soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender apropriar-se dela. A democracia alia estes dois princípios aparentemente contraditórios: um, que o poder emana do povo; outro que esse poder não é de ninguém. Ora, ela vive dessa contradição. Por pouco que esta se arrisque a ser resolvida ou o seja, eis a democracia prestes a se desfazer ou já destruída. Se o lugar do poder aparece, não mais como simbolicamente mas realmente vazio, então os que o exercem não são mais percebidos senão como indivíduos quaisquer, como compondo uma facção a serviço de interesses privados e, simultaneamente, a legitimidade sucumbe em toda a extensão do social; a privatização dos agrupamentos, dos indivíduos, de cada setor de atividade aumenta: cada um quer fazer prevalecer seu interesse individual ou corporativo”. Claude Lefort. A invenção democrática. Trad. Isabel Marva Loureiro.
Explicação: O autor mostra nesse trecho que a democracia não é apenas um regime regido por leis, fundado na vontade popular, mas também aquele no qual um cidadão qualquer, ou grupo político não pode se identificar inteiramente com o poder. Se de um lado há uma dimensão concreta do poder, que está presente nos diversos cargos e magistraturas, há também um aspecto simbólico e imaginário, que faz com que em uma democracia ele não seja nunca uma propriedade privada de um de seus membros.
Questões.
1. Quais são a seu ver as principais ameaças às sociedades democráticas atuais?
2. Uma democracia pode se transformar num regime totalitário assim como Platão acreditava que ela se transformava em tirania? Faça uma pesquisa para descobrir as principais diferenças entre as democracias do mundo antigo e as nossas.
3. Uma sociedade baseada apenas no consumo e na defesa dos direitos dos consumidores ainda pode ser chamada de democracia?
QUESTÕES ATUAIS SOBRE O PODER. ( grupo 7)
A civilização ocidental passou nas últimas décadas por um intenso processo de transformações, que o escritor Adauto Novaes caracterizou como um período de “mutações”, sugerindo com isso que as mudanças rápidas pelas quais passam nossas sociedades estão apontando para um mundo diferente daquele que emergiu quando do desenvolvimento do capitalismo industrial e das sociedades de massa. A principal característica dessas mutações é o papel que as técnicas e as ciências passaram a ocupar na vida de todos nós. Ainda no século XX, vários pensadores se preocuparam com o papel que a técnica estava ocupando na esfera da política. Nas últimas décadas, o que assistimos foi uma verdadeira aliança entre a tecno-ciência e o poder político. O próprio discurso científico se transformou em uma forma de poder na medida em que pretende ser a fonte de toda autoridade. Hoje em dia, se quisermos afirmar algo como verdadeiro, é fundamental associarmos o que estamos dizendo à ciência, sob pena de sermos criticados por adotarmos um discurso que não possui todas as garantias da razão. O problema dessa postura é que ela esconde as fragilidades da própria ciência e acaba se transformando em um discurso absoluto, que legitima qualquer ação que parece decorrer das leis da natureza investigadas pelos mais diversos saberes. Dizendo de outra forma, poder e autoridade parecem migrar da esfera política para aquela do discurso científico, pretendendo substituir os mecanismos de decisão coletiva pela palavra dos especialistas.
Na esteira do aparecimento de um poder legitimado pelo discurso tecno-científico surge um mundo no qual os aparatos técnicos são parte integral de nosso cotidiano. Cada vez mais falamos de prolongar a vida por meios artificiais, duplicar o corpo por meio de clonagens, suprimir o homem de várias cadeias produtivas, descobrir a química do cérebro para produzir novos seres humanos. Um mundo de ficção científica emerge, sem que saibamos ao certo as consequências dessas mutações para a esfera da política e mesmo da intimidade. Nesse universo em transformação radical teremos mais uma vez de pensar os fenômenos do poder que, como vimos, fizeram parte da história do pensamento político desde a antiguidade. Esse desafio deve levar em conta que cada época tem seus próprios problemas, derivados de suas condições históricas concretas, mas está ao mesmo tempo vinculada ao passado, que a viu emergir e pode nos fornecer as pistas para a compreensão de suas origens. Com a emergência do poder das tecno-ciências, estamos diante da afirmação de um poder que pretende se libertar do passado, e mesmo do futuro, para nos fazer viver em um presente eterno. Se apenas a razão instrumental é válida, e se somos visados apenas como consumidores de bens e não mais como cidadãos de um regime de liberdade e direitos, é mister reconhecer que estamos diante de um novo mundo e de novas formas de poder. Michel Foucault (1926-1984) já alertava no século passado que o poder estava se convertendo em biopoder, ou seja, ele visa antes de mais nada se afirmar pelo domínio do corpo e de suas necessidades. Um exemplo da realização do biopoder, que só se tornou possível com a associação da política com o mundo da técnica, foi o que ocorreu nos campos de concentração, que se disseminaram por várias partes do mundo no século XX. Nesses espaços fechados, os seres humanos são destituídos de toda dignidade para serem visados apenas como um amontoado de energia, que pode ser destruído a qualquer momento pela mão dos que governam. Esse cenário preocupante é uma indicação dos caminhos que deve trilhar toda reflexão atual sobre o tema desse módulo na atualidade.
Temas complementares.
1. O impacto do progresso das tecno-ciências na organização das sociedades democráticas.
2. A substituição do homem por máquinas gera efeitos negativos na vida cotidiana?
3. Estamos vivendo num mundo de ficção científica, que vai além de nossa imaginação?
4. É possível prever os efeitos das transformações técnicas em nossas vidas?
5. As ciências possuem uma autoridade maior quando se trata de estudar as questões de poder?
Bibliografia complementar
Cassirer, Ernest. O mito do Estado. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1976.
Quirino, Célia; Souza, Maria Teresa Sadek (orgs). O pensamento político clássico. São Paulo: Tao, 1980.
Chevallier, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro, Editora Agir, 1976.
Bobbio, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Editora da UNB, 1992.
Caillé, Alain; Lazzeri, Christian; Senellart, Michel (orgs). História argumentada da filosofia moral e política. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.
Fim
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Primeiro texto
Indivíduo e Comunidade (PARA TODOS OS GRUPOS)
Introdução:
Os termos “indivíduo” e “comunidade” parecem possuir significados opostos. Por um lado, “indivíduo” quer dizer “o que não pode ser dividido”, estando associado, portanto, às noções de “unicidade”, “unidade”, “propriedade”, “particularidade”, ou seja, a tudo aquilo que não é partilhado. Por outro lado, “comunidade” se refere àquilo que é “comum”, àquilo que é de todos (sem ser de ninguém em particular), àquilo que concerne a todos. Logo, a palavra “comunidade” está relacionada à vida em comum, à existência compartilhada, ao passo que “indivíduo” diz respeito à autonomia e à independência. Porém, esse contraste terminológico não deve fazer esquecer que, no que concerne à existência humana, não é possível falar de indivíduo sem referir-se à comunidade, e vice-versa. Isso significa que o ser humano encontra-se sempre inserido em uma comunidade. É preciso, contudo, ter em mente que essa inserção não é idêntica àquela que identificamos em outros animais, como as abelhas ou as formigas. No caso do ser humano, a vida em comunidade não resulta meramente de uma tendência instintiva (embora tenha relação com as necessidades). Além disso, ela está ligada àquilo que chamamos de cultura, o que permite pensar em uma série de diferenças para com a vida animal. Por exemplo, a presença da linguagem ou, ainda, a existência de um conjunto de princípios que orientam o comportamento (a moral e as leis). Tendo isso em mente, podemos perceber que a existência em comunidade (e poderíamos também dizer: a vida em sociedade) é de importância fundamental para a constituição de quem nós somos como indivíduos. Por esse motivo, o que entendemos por nossa “individualidade” está em estreita dependência da vida em comunidade. Os animais, nesse sentido, não possuem “individualidade” (a não ser que tomemos este termo em uma acepção biológica e, nesse caso, são indivíduos de uma espécie). Logo, falar de uma existência individual absolutamente autônoma e independente para o homem é uma abstração que não encontra correspondência na realidade.
Antiguidade.
Platão (428/348 a.C.) (GRUPO 1)
Há pelo menos duas maneiras de abordar o problema da relação entre indivíduo e comunidade no pensamento de Platão. A primeira delas – correspondendo à fase inicial de sua filosofia, em que Platão está mais fortemente influenciado pelo pensamento socrático – formula a questão nos seguintes termos: a existência de um ser humano (em seu sentido mais amplo: vital, educacional, moral) depende inteiramente da comunidade em que vive (o que, na época de Platão, era chamado de pólis). Sendo assim, o indivíduo deve ser identificado com o cidadão, isto é, a pólis constitui o âmbito no qual sua vida adquire significação. Mas a pólis não se confunde com a simples agregação de pessoas. Ela é simultaneamente um espaço ético e legal. Por esse motivo, o bom cidadão é aquele que, por um lado, toma para si a obrigação de cuidar do seu próprio aperfeiçoamento moral e dos outros e, por outro lado, se compromete com a obediência das leis. Nos textos que Platão escreveu, Sócrates encarna esse ideal de cidadania.
Texto: “Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos [para a cidade].”
(Platão, Apologia de Sócrates, 30 b. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1987, p. 15. Coleção Os Pensadores).
Explicação: Essas palavras de Sócrates (escritas por Platão e supostamente pronunciadas diante de um tribunal que terminará por condená-lo à morte) mostram que ocupar-se de si e dos outros é a principal tarefa do bom cidadão. Mas em que exatamente essa função consiste? Basicamente, trata-se de incentivar a si mesmo e aos demais a priorizar os bens da alma, os quais podem ser definidos como virtudes. Em uma ordem hierárquica, as virtudes estão acima dos bens do corpo e das riquezas. E o que elas são? Para Sócrates (tal como Platão o apresenta) essas virtudes estão ligadas às ideias que orientam nossas ações, as ideias que nos fazem agir de uma determinada forma e não de outra. Por exemplo, uma pessoa justa é aquela que age de acordo com a ideia da justiça. Em termos práticos, isso quer dizer que ela age conforme aquilo que acredita ser justo. A virtude, para Sócrates, é precisamente esse conhecimento que nos leva a agir. Assim, o homem corajoso é aquele que sabe o que é a coragem e, por causa disso, age segundo a virtude. Ora, essa opinião acerca do que é a justiça (ou a coragem, ou outra virtude qualquer) nem sempre é fundamentada. Muitas vezes apenas acreditamos saber o que é justo, mas se formos indagados sobre a essência da justiça descobriremos que na verdade a ignoramos. E nesse caso não somos realmente virtuosos. Sócrates, então, dedicava sua vida a ajudar seus concidadãos a fazer essa pergunta a si mesmos, a examinarem a si mesmos a fim de saber se conhecem realmente o que acreditam saber.
Essa atividade socrática pode não ter a ver diretamente com a política. Mas no fundo, ela tem um grande efeito político porque permite ao cidadão (ao examinar a si mesmo) reformular seu papel na cidade e colocar em xeque os princípios que determinam sua prática política. E esse cidadão com desenvolvida consciência crítica não vai deixar de interrogar a validade dos princípios que fundamentam a vida em comum. Como vemos, a consciência crítica dá origem a um distanciamento crítico do indivíduo frente aos valores comumente partilhados. Isso não levaria a uma completa desestabilização da ordem social e política? Para Platão a resposta é não.
Texto: “Obedece-nos, pois, Sócrates, a nós que te criamos, e não preze os teus filhos, a tua vida, ou o que quer que seja, mais do que a justiça, para que, ao chegar ao Hades[1], possas alegar isto em tua defesa aos que ali governam.” (Platão, Críton, 54 b. Trad. de Manuel de Oliveira Pulquério. In: Platão, Apologia de Sócrates, Críton. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 82).
Explicação: Nessa passagem (situada na prisão de Atenas no momento em que Sócrates aguarda o cumprimento de sua pena de morte), Platão cria um diálogo entre as Leis da cidade e Sócrates. A partir do que elas dizem a ele podemos inferir que o mesmo Sócrates que critica as ideias e valores aceitos defende uma obediência incondicional (ou quase) à lei. Essa aparente contradição pode ser esclarecida da seguinte maneira: a lei é o que dá coesão à pólis, é o que permite que os homens possam se beneficiar de uma vida em comum. Mesmo que ela seja injusta, ou que sua aplicação seja injusta, um mal maior, para o indivíduo e para a comunidade, será cometido se a lei for desrespeitada. Por essa razão, Sócrates prefere se submeter à injustiça decorrente de um abuso da lei do que cometer a injustiça de infringir a lei. O único limite que ele estabelece para a obediência é o caso em que a lei ordena alguém a cometer uma injustiça. E a razão é simples: do ponto de vista de Sócrates, cometer uma injustiça é o pior dos males possíveis, maior do que sofrer uma injustiça.
Com esse tema da justiça, chegamos ao segundo modo de abordar o tema indivíduo/comunidade no pensamento platônico. Uma preocupação maior de Platão é pensar quais são as condições para que entre indivíduo e comunidade reine uma perfeita harmonia. O filósofo está convencido dessa possibilidade porque há, segundo ele, uma correspondência entre a alma do ser humano e a ordem política da cidade.
Texto: - E o homem justo não será então em nada diferente da cidade justa, no que respeita à noção de justiça, mas será semelhante a ela?
- Semelhante, disse ele.
- Mas uma cidade justa pareceria ser precisamente justa quando os três grupos naturais presentes nela exercessem cada um sua tarefa própria e ela nos pareceria moderada, ou ainda corajosa e sábia, em razão das afecções e disposições particulares desses mesmos grupos.
- É verdade, disse ele.
- Logo, meu amigo, entendemos que o indivíduo, que tiver na sua alma estas mesmas classes, merece bem, devido a estas mesmas qualidades, ser tratado pelos mesmos nomes [os das virtudes referidas acima: moderação, coragem e sabedoria] que a cidade.
- É absolutamente forçoso, disse ele.
(Platão, República, 435 b- c. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 189. tradução modificada)
Explicação: Nesse diálogo, Platão mostra Sócrates conversando com Glauco sobre o tema da justiça na alma e na cidade. Fica claro que ele acredita que tanto uma quanto outra obedecem aos mesmos princípios. Pela mesma razão, é possível falar de virtude não somente para se referir às qualidades morais individuais, mas também para se referir ao modo como a pólis se organiza. Uma alma “bem organizada” se caracteriza por uma correta disposição de seus diversos elementos (as “três classes” a que o texto se refere: os desejos, as paixões – ou impulsos – e a razão). Quando os desejos e afetos estão devidamente orientados pela razão a alma possui uma estrutura harmônica. Na cidade deve ocorrer a mesma coisa. Nela também temos três classes (os cidadãos que trabalham e se ocupam de atividades econômicas, os que se ocupam da guerra e da defesa da cidade e aqueles cidadãos que são encarregados de governar). Se quem exerce a função de comandar os outros é um homem sábio e capaz de comandar a si mesmo, então está assegurada a possibilidade da pólis ser unida e justa. A justiça, para Platão, pode ser compreendida como essa boa ordem na alma e na cidade. Ela pode igualmente ser definida da seguinte maneira: quando cada uma das partes da alma de cada cidadão cumpre sua função própria sob o governo da razão e quando cada cidadão faz o mesmo no âmbito da cidade, temos um indivíduo e uma pólis justos. Resta, por fim, observar que essas duas ordens justas estão referidas uma à outra. A justiça como virtude individual é imprescindível para a existência de uma cidade justa, assim como a cidade justa é o lugar em que a alma encontra a possibilidade de exercer a justiça e se tornar ela mesma justa.
Problema: Para Platão, a boa e justa organização da cidade deve obedecer às diferenças naturais entre os homens. Assim, cada um ocupará o seu lugar (de soldado, de artesão ou de governante) segundo os seus dons naturais. Você vê algum problema nesta ideia?
Sugestão de Atividade: Assista ao filme Sócrates, dirigido por Roberto Rossellini em 1974, e discuta as questões trabalhadas neste tópico.
Aristóteles (384-322 a.C.)
Como vimos, Platão, ao aproximar os princípios morais dos princípios políticos, explicita a natureza dos fortes laços que unem indivíduo e comunidade. Em Aristóteles vamos encontrar ponto de vista semelhante, embora formulado de maneira distinta. Um trecho de seu livro que trata da política ajudar a entender a questão.
Texto: “É manifesto (...) que a cidade faz parte das coisas naturais e que o homem é por natureza um animal político, e aquele que está fora da cidade, naturalmente, claro, e não por acidente das circunstâncias, é ou um ser degradado ou um ser sobre-humano” (Aristóteles, Política, 1253 a -5. Trad. de P. Pellegrin. Paris: Flammarion, 1993, p. 90.)
Explicação: Para Aristóteles, a existência do homem implica seu pertencimento a uma comunidade política. Apenas os animais ou os deuses escapam à condição política. É nesse sentido que a vida política é entendida como natural ao homem. Isso não significa que a cidade é natural assim como o mundo que nos cerca, o universo, as plantas ou os outros animais. A cidade é natural ao homem, ou ainda, a natureza humana é caracterizada por uma inclinação a viver em sociedade. E devemos entender esta última afirmação da seguinte maneira: o homem apenas se realiza como tal se vive em uma pólis. A inclinação, portanto, nada tem de acidental.
Essa série de considerações nos leva a pensar sobre a ideia do bem humano. Para Aristóteles, a natureza política do homem está associada ao fato de que somente vivendo em comunidade ele pode encontrar as condições necessárias para alcançar o bem supremo, isto é, a felicidade. A finalidade primeira da cidade é, assim, a concretização desse bem superior, o que confere à associação política a primazia sobre todas as demais formas de associação, incluindo a família. Esse bem, contudo, não deve ser confundido com algo externo ao homem ou com uma coisa que ele poderia possuir e perder. O bem que se realiza na vida política corresponde a uma atividade, a um modo de vida. A qual atividade Aristóteles está se referindo? Ora, para pertencer efetivamente a uma pólis é requerido o exercício da cidadania, isto é, participar diretamente da vida política, seja exercendo cargos (que, nesse contexto, recebiam a denominação geral de “magistraturas”) seja frequentando as instâncias decisórias (como os tribunais e as assembleias deliberativas). Em outras palavras, o cidadão deveria conhecer não apenas a situação de governado, mas também a de governante, contribuindo, individualmente, para o bem do todo. É claro que o bem individual está implicado no bem do todo, e Aristóteles está convencido de que essa vinculação é essencial. Porém, o bem individual não está simplesmente contido no bem comum. Na verdade, cuidar do bem comum é já exercer uma atividade virtuosa, é já experimentar uma vida boa. A participação na vida pública é a ocasião para que o ser humano desenvolva suas virtudes e este desenvolvimento é inerente à ideia de realização e de felicidade. Logo, não há felicidade sem política.
Problema: As concepções de Platão e Aristóteles fazem pensar em uma série de questões que podemos colocar a respeito de nossa realidade política. Por exemplo, como devemos agir quando uma lei nos parece injusta? Quais relações éticas e política mantêm entre si? Uma pessoa pode ser realmente feliz a despeito da felicidade alheia? Tente responder a essas questões e, a partir da leitura do texto, elabore outras.
https://www.youtube.com/watch?v=buhLlfTVPwI – Filme “A maça”.
Modernidade.
Thomas Hobbes (1588-1679) (GRUPO 2)
Com Hobbes veremos se cristalizar uma perspectiva filosófica que colocará em termos muito diferentes das anteriores o problema da relação entre indivíduo e comunidade. Para iniciar sua análise, poderíamos lembrar uma frase escrita por Plauto (um autor latino de comédias) muitos séculos antes de Hobbes e que diz o seguinte: “O homem é o lobo do homem”. Na introdução de um de seus livros (Do Cidadão), Hobbes reproduz essa frase, o que nos autoriza a inferir que ela funciona como uma espécie de emblema de toda filosofia que coloca em dúvida a tese da sociabilidade natural do ser humano. Se o homem é o lobo do homem, então ele não está, por natureza, inclinado a estabelecer laços duradouros com seu semelhante, os quais requerem a presença de sentimentos morais e de uma consciência ética. Mas o que está aí em questão não é tanto a ideia da maldade natural do ser humano e sim o fato de que os homens, sendo por natureza iguais, necessariamente entram em conflito. O principal objetivo de Hobbes ao nos lembrar dessa frase é mostrar que a vida em comunidade não decorre naturalmente da condição humana. Antes, ela é uma construção dos homens. Uma vez realizada essa construção, o homem, diz ainda Hobbes, torna-se “um Deus para o homem”. Reformulemos, então, o problema. Para Hobbes, autores como Aristóteles estão equivocados ao afirmar que o homem é um animal político porque a natureza não dispõe os homens para estabelecerem a vida em comunidade. Diferentemente do que pensavam os antigos, os homens, para Hobbes, não são naturalmente desiguais. Todos detêm basicamente o mesmo poder e as mesmas capacidades, mas também os mesmos desejos. Logo, o conflito é uma possibilidade que não podemos eliminar. É nesse contexto que faz sentido a existência de uma sociedade política. As relações políticas (assim como a vida em comunidade) são um artifício cuja finalidade primeira é proteger os homens deles mesmos. Atendida essa necessidade, os homens encontram as condições adequadas para o desenvolvimento de suas habilidades (intelectuais, afetivas, econômicas), constituindo o que poderíamos chamar de “cultura”.
Ora, a realização desse objetivo não pode ser assegurada sem alguma forma de coerção ou de uso da força. E a razão é muito simples: se os homens não estão naturalmente dispostos a se associarem, torna-se necessária a presença de uma instância política (o Estado) autorizada a exercer o poder para fazer com que respeitem as leis. Essa coerção não se confunde, contudo, com a mera violência. Vale lembrar que o Estado, como invenção humana, existe para atender aos interesses humanos e por isso sua origem remonta à vontade dos cidadãos.
Texto: “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária (...) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de mantê-los em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos...” (T. Hobbes, Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 103. Coleção Os Pensadores).
Explicação: A “restrição sobre si mesmos” de que fala Hobbes é precisamente o poder político na forma da soberania, isto é, o domínio autorizado do Estado (o Leviatã) sobre os cidadãos. Esse domínio autorizado permite aos homens sair da condição “miserável” em que se encontram naturalmente e viver mais “satisfatoriamente” em uma comunidade. Do ponto de vista de Hobbes, a condição originária dos seres humanos (que ele denomina por vezes de “estado de natureza”) é a vida isolada, a qual, no entanto, apresenta inúmeras desvantagens. Está claro, então, que a associação é o melhor recurso. Mas como ela não decorre de uma inclinação natural, somente a criação de um poder “externo” aos seres humanos será capaz de mantê-los obedientes às leis e compromissos em que se engajam. Para concluir, vale a pena observar que Hobbes concede ao mesmo tempo muito e pouco ao indivíduo frente à comunidade. Concede muito porque ele é pensado como originalmente independente dela. A comunidade é posterior ao indivíduo, é composta por eles para a consecução de fins que são individuais. Por outro lado, Hobbes concede pouco porque sem a comunidade, sem a presença do poder político, os indivíduos são incapazes de levar uma vida satisfatória, estando submetidos aos impulsos de suas paixões e entregues à violência. A justiça, que em Platão estava também na alma dos homens, para Hobbes é fruto de um pacto e é, assim, exterior a eles.
Problema: Hobbes descreve o indivíduo em seu “estado de natureza”, independentemente de toda a sociedade. Quais são as características deste indivíduo, segundo o filósofo? Você considera possível discorrer sobre o ser humano fazendo abstração de toda sociedade?
Sugestão de Atividade: Assista ao filme Ensaio sobre a cegueira e, tomando por referência teórica o pensamento de Hobbes, estabeleça uma discussão sobre as seguintes questões: Que tipo de relação os indivíduos manteriam entre si se não houvesse o poder do Estado? O que justifica a existência do Estado?
John Locke (1632-1704) (GRUPO 3)
Escrevendo algumas décadas depois de Hobbes, Locke ainda está fortemente influenciado pelo mesmo contexto político e ideológico. Sob diversos aspectos, sua proximidade com Hobbes é evidente. Mas, no que toca ao nosso tema, há uma diferença que merece ser salientada. É verdade que Locke aceita a tese que afirma ser a associação política um artifício dos homens e, por isso, resultado de sua vontade. Locke também reforça o sentimento de que a existência individual é irredutível à coletividade. Mas diferentemente de Hobbes, ele acredita que o “estado de natureza” (isto é, a condição originária em que os homens se encontram antes do estabelecimento do poder político) é marcado pela sociabilidade. Em outras palavras, a sociabilidade antecede o político.
Texto: “Tendo Deus feito o homem uma criatura tal que, segundo seu próprio juízo, não lhe era conveniente estar só, colocou-o sob fortes obrigações de necessidade, conveniência e inclinação para conduzi-lo para a sociedade, assim como o proveu de entendimento e linguagem para perpetuá-la e dela desfrutar” (John Locke, Segundo tratado sobre o governo. Trad. de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 451). “Sendo todos os homens (...) naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente uns com os outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte” (Ibidem, p. 468).
Explicação: Nessas duas passagens do tratado de Locke podemos identificar a presença de um elemento “clássico”, isto é, que remonta à filosofia antiga, e de um elemento moderno. Locke entende que a condição natural destina o homem à vida social. Por outro lado, a segunda passagem nos mostra que a associação política (e, consequentemente, o poder político) se funda sobre o consentimento dos homens, o que é o mesmo que dizer que decorre de um ato voluntário, que Locke (assim como Hobbes) chama de pacto. Logo, o corpo político (o Estado em sua acepção mais ampla) não é natural. Uma possibilidade de resolvermos essa aparente contradição consiste em marcar a diferença entre sociedade e sociedade civil, a primeira referindo-se a qualquer associação duradoura entre seres humanos e a segunda expressando sua igual submissão a um poder político legitimamente instituído. O que podemos inferir dessa diferença? Primeiramente, Locke postula a existência de uma comunidade ética anterior à formação do Estado. Criador dos homens, Deus, como faz com toda a natureza, estabelece leis às quais cabe aos homens cumprir. O homem é o executor da lei de natureza (ou da lei divina). Sendo assim, os seres humanos já se encontram vinculados (moralmente) entre si e já dispõem de claros princípios de ação que os obrigam independentemente da construção da sociedade política. Esses deveres são acompanhados, contudo, por direitos, os quais podem ser resumidos da seguinte forma: todos podem punir a todos aqueles que infringem a lei de natureza; todos os seres humanos têm igual direito à propriedade. Este último ponto requer explicação: a condição do homem, para Locke, é a de proprietário. Cada ser humano é, inicialmente, proprietário de seu corpo e dos frutos de seu trabalho. O trabalho, aqui, deve ser tomado na mais ampla acepção possível. Ao fazer o esforço de colher uma maçã na árvore, um homem realizou um trabalho e isto lhe confere direito de propriedade sobre a maçã. Logo, a propriedade é inerente à condição humana visto que a sobrevivência (que é, aliás, uma obrigação moral) implica apropriar-se. A sociedade civil vem a se constituir porque a vida na comunidade original apresenta algumas deficiências. Não há garantia de que esses direitos serão respeitados. Além disso, cada homem, obrigado a obedecer e a fazer obedecer às leis divinas, é suscetível a cometer excessos no cumprimento dessa função. Como diz Locke, cada um é “juiz em causa própria”. Sendo assim, é necessária a instituição de uma instância mediadora, acima dos poderes individuais para fazer vigorar a legalidade e o direito. Ora, essa instância é o poder político. Ele tem, portanto, como tarefa sanar as inconveniências da condição natural, respeitando a liberdade, a igualdade e a propriedade naturais. Para Locke não poderia ser de outro modo, pois a razão de se formar o Estado é precisamente o desejo de preservar esses bens. O pensamento de Locke deixa transparecer a complexidade da relação entre indivíduo e comunidade. Por um lado, não é possível ao ser humano levar uma vida isolada dos demais. Por outro lado, esse encontro não pode implicar a destituição da individualidade nem dos direitos naturais. O ser humano, ao ingressar em uma sociedade política, deve renunciar a alguma parte de seus direitos, mas jamais poderá fazê-lo integralmente, sob o risco de colocar-se em uma situação pior do que aquela anterior à formação do Estado.
Fica reforçada com Locke a noção de individualidade jurídica e é essa mesma noção que está na base de boa parte de nossas reivindicações políticas atuais. Quando exigimos que o Estado “cumpra seu papel”, estamos, via de regra, fazendo apelo a esses direitos que acreditamos anteriores ao poder político (e que lhe conferem sua razão de ser).
Problema: 1- O conceito de propriedade é central no pensamento de Locke. Identifique como este conceito permite que Locke conceba uma comunidade política que se concilia com os direitos do indivíduo. 2- Você concordaria com a ideia de Locke de que a propriedade é um direito natural?
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) (GRUPO 4)
Com Rousseau vemos uma nova formulação do problema indivíduo/comunidade no âmbito do pensamento político. Leitor dos autores do século XVII (como Hobbes e Locke), Rousseau tentará integrar um forte sentimento da individualidade com um igualmente forte pertencimento a uma associação política, mas por um caminho distinto daquele seguido por seus antecessores. Em uma contundente crítica à sociedade de seu tempo, Rousseau acredita que o homem vive iludido pela aparência, preso às convenções e aos jogos sociais e, por conseguinte, descentrado de si mesmo. A esfera social é aquela em que o ser humano valoriza as opiniões alheias em detrimento de sua autonomia e autenticidade. A vida social arruína, portanto, a espontaneidade, a liberdade, a independência naturais à condição humana. Mais ainda, degrada o homem, introduzindo em sua alma os vícios e deteriorando seu corpo. “O homem que medita é um perverso”, diz nosso autor em uma conhecida passagem de seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754-5). Rousseau recusa, assim, o pessimismo antropológico de matriz agostiniana que tende a identificar o mal com a condição humana após a queda. O mal, para ele, corresponde a uma distorção da natureza operada pela vida em sociedade. De acordo com esse raciocínio, na condição originária (no “estado de natureza”) o homem está ao abrigo de toda iniquidade, desconhecendo em que consiste o mal. É um estado marcado pela liberdade e pela igualdade.
A crítica de Rousseau à vida social se estende à vida política. As formas de organização política que conhecemos na atualidade exercem o mesmo efeito nocivo sobre a natureza humana, reduzindo o homem a uma condição miserável.
Textos: “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se a ferros”. “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece”. (Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social. Trad. de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 22 e 32. Coleção Os Pensadores”).
Explicação: Essas duas passagens, respectivamente dos capítulos I e VI do primeiro livro do Contrato social (1762), mostram, em primeiro lugar, a discrepância entre a condição natural de liberdade e a vida em sociedade marcada pela servidão. A segunda passagem, por sua vez, indica que a solução para essa dificuldade se encontra no estabelecimento do “contrato social” por intermédio do qual os homens poderão reencontrar sua liberdade perdida. Rousseau está sugerindo uma solução política para um problema que é detectado na própria esfera política.
O “contrato social” deve ser entendido como o único expediente possível para impedir a dominação do homem pelo homem. E em que consiste esse contrato? Trata-se, diz Rousseau, de uma “alienação total” de cada indivíduo, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. Esse é o modo pelo qual a igualdade e a liberdade são restauradas porque essa entrega mútua, na qual cada um “põe em comum sua pessoa e todo seu poder”, submete e libera. Submete todos a uma vontade comum (que Rousseau chama de “Vontade Geral”) e libera, no mesmo movimento, o indivíduo do jugo de um outro. Em outras palavras, a solução, para Rousseau, está em todos submeterem-se igualmente à lei (que deve ser a expressão da Vontade Geral).
Como não podemos detalhar a argumentação de Rousseau, vamos reter ao menos o seguinte: a “alienação total” de que falar Rousseau não significa dissolução da individualidade. Pelo contrário, significa sua conservação naquilo que ela tem de mais original: a liberdade. Essa “entrega” à comunidade não sufoca o sentimento da individualidade, mas permite que ela seja exercida sem ameaçar o outro ou a si mesma. A associação política, nos moldes concebidos por Rousseau, certamente exige o sacrifício de algumas inclinações e interesses pessoais em benefício da coletividade. Mas a perda é muito pequena quando comparada ao ganho que traz consigo essa “renúncia”. A individualidade natural é precária e a autonomia que a acompanha é limitada. Em contrapartida, a individualidade livre conhecida em um Estado livre é incomparavelmente superior. Rousseau a chama de “liberdade moral” e a qualifica como “a única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo”. É possível inferir, então, que nosso autor tem em alta conta a comunidade política e está longe de condenar sem restrições a passagem do estado de natureza ao estado político. Mais ainda, Rousseau parece estar convencido de que a solução para os conflitos que eventualmente opõem o indivíduo à comunidade é de natureza política.
Problema: Tente formular alguma justificativa para a ideia de Rousseau de que a liberdade dos homens na comunidade política é superior à liberdade do homem no estado natural.
John Stuart Mill (1806-1873). (GRUPO 5)
Poucos autores foram tão sensíveis à questão que viemos examinando quanto John Stuart Mill. Com efeito, o exame da relação entre indivíduo e comunidade ocupa um lugar importante em sua obra, como podemos ver nos ensaios Sobre a liberdade e Utilitarismo. Um dos principais objetivos de Mill é delimitar uma esfera para a ação individual que não fira e ao mesmo tempo não seja ferida pelos interesses coletivos.
Embora sob diversos aspectos as análises de Mill convirjam com a de Locke, sua preocupação é de outra ordem, assim como a natureza de sua argumentação. Não é apelando a uma individualidade jurídica que Mill irá resolver as tensões entre sociedade e individualidade, mas dando ao problema um tratamento moral na forma da aplicação do que ele chama de “Princípio de Liberdade”. Este princípio postula que somente no caso de algum dano (harm) ser cometido a alguém a liberdade pode ser restringida. Caso contrário, a individualidade deve ser respeitada. Mas esse princípio, por si só, não é suficiente para justificar a restrição da liberdade. Por isso, é preciso que ele seja referido a um outro princípio que é o da Utilidade (que Mill herda de Jeremy Bentham e submete a severas críticas). Em linhas gerais, este último princípio diz que as ações são consideradas moralmente corretas quando contribuem para promover a felicidade do maior número (de pessoas), e moralmente incorretas quando resultam no contrário.
Não escapa a Mill a inevitável tensão entre o interesse da comunidade e as aspirações individuais. O Princípio da Liberdade tem por finalidade instaurar um equilíbrio de modo a evitar que a promoção do bem individual prejudique a coletividade e de modo que o bem-estar da sociedade não impeça que os indivíduos procurem satisfazer seus próprios interesses do modo que julgar conveniente.
Texto: “A sociedade pode executar e executa seus próprios mandatos; e se expede mandatos equivocados no lugar dos corretos, ou quaisquer mandatos a respeito de coisas nas quais não deveria interferir, pratica uma tirania social mais terrível do que muitas espécies de opressão política, uma vez que (...) penetra mais profundamente nos detalhes da vida, escraviza a própria alma, deixando poucas vias de fuga.
Não basta, portanto, a proteção contra a tirania do magistrado; é necessária também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes, contra a tendência da sociedade a impor, por outros meios além da penalidade civil, as próprias ideias e práticas como regras de conduta aos que dela dissentem; aguilhoar o desenvolvimento e, se possível, a impedir a formação de qualquer individualidade que não esteja em harmonia com seus costumes, e a compelir a todos os tipos humanos a se conformar a seu próprio modelo”. (John Stuart Mill. Da liberdade. Trad. de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 10-1. A tradução foi levemente modificada).
Explicação: As análises de Mill ultrapassam o âmbito da política e colocam abertamente o problema da oposição entre indivíduo e comunidade como uma questão social e moral. Ao se referir a uma “tirania da sociedade”, o autor está chamando a atenção para um problema premente na sociedade contemporânea: a força da maioria, do grande número em uma sociedade que é essencialmente democrática (por essa razão, vale a pena aproximar o trabalho de Mill àquele que Alexis de Tocqueville – seu contemporâneo – realiza em seu livro Da democracia na América).
Nesse contexto a igualdade não é apenas um princípio político, mas torna-se o princípio social fundamental. Consequentemente, o poder da sociedade impor padrões de conduta sobre seus membros é altamente reforçado. Além disso, esse poder, como Mill observa, é mais insidioso porque não é exercido somente pelas vias institucionais (os magistrados a que ele se refere). Associada aos costumes trata-se de uma forma de poder que se exerce cotidianamente, diretamente sobre os indivíduos, incitando-os a se conformar a determinado padrão. A liberdade individual apresenta-se, assim, como um ponto de resistência ao domínio da maioria, sem provocar ruptura, no entanto, com a ordem social.
Vale lembrar que Mill a define, de início, negativamente, ou seja, como o limite do poder que a sociedade pode exercer sobre o indivíduo.
Positivamente seu conteúdo não pode ser preciso, uma vez que as aspirações individuais são tão variáveis quanto os próprios indivíduos.
Problemas: As reflexões de Mill nos auxiliam a pensar algumas dificuldades de nossa própria experiência social. Por exemplo, em que termos podemos conceber na atualidade a tensão entre individualidade e sociedade? Em quais ocasiões podemos perceber o que Mill denomina de “tirania da sociedade”? Em que medida os diversos tipos de preconceitos (social, racial, religioso) podem ser considerados sob a perspectiva de Mill?
Contemporaneidade. (GRUPO 6)
No âmbito da filosofia política da atualidade, podemos destacar duas correntes que defendem pontos de vistas muito distintos sobre o problema de que viemos abordando. A primeira delas é o Liberalismo e a segunda o Comunitarismo. Deve ficar claro que a referência a elas está longe de esgotar a complexidade das perspectivas políticas contemporâneas. Mas, tendo em vista nossos fins, elas parecem constituir uma polaridade que esquematiza satisfatoriamente as principais maneiras de tratar a questão.
Liberalismo.
Em primeiro lugar, precisamos lembrar que sob o termo “liberalismo” há uma variedade muito grande de doutrinas pertencentes, por sua vez, a campos diversos do pensamento (filosofia, sociologia, economia). Em segundo lugar, faremos uma apropriação muito particular da tradição liberal a fim atender a nossos propósitos, negligenciando, por isso, um tratamento mais rigoroso dessa corrente de pensamento. Nossa estratégia será então destacar um ponto comum aceito por quase todos aqueles que se abrigam (ou são abrigados) sob a denominação “liberal”. Este ponto comum está atrelado à noção de “indivíduo”. Para os liberais (dentre a gama de autores, podemos citar John Rawls, Ronald Dworkin e Thomas Nagel, para ficar com os mais conhecidos), apenas podemos compreender a sociedade e a política se nos referirmos à individualidade que está em seu fundamento. Assim, os bens sociais não podem ser separados dos bens individuais e os princípios políticos devem estar orientados por esses mesmos bens. Dizendo de outra maneira, os liberais são aqueles para os quais nas questões políticas e sociais a primazia deve ser concedida aos direitos individuais e à liberdade. Não deve causar espanto o fato de Locke e Mill serem comumente identificados como membros da tradição liberal.
De modo muito esquemático, poderíamos dizer que a concepção liberal defende uma espécie de “individualismo” segundo a qual a sociedade não pode ser tomada como um fim em si mesma. Antes, ela integra um conjunto de procedimentos com os quais os indivíduos podem satisfazer suas aspirações. A condição necessária para tanto é que a sociedade não apresente um modelo de vida impositivo, único, devendo comportar e acolher (na medida do possível) as diferenças, o que nos leva a concluir que, de acordo com esse ponto de vista, a sociedade deve ser necessariamente pluralista. A conservação desse tipo de sociedade requer que a ação política do Estado ofereça as condições necessárias para que cada indivíduo encontre a oportunidade para exercer sua autodeterminação.
Texto: “Como pessoas livres, os cidadãos reconhecem-se mutuamente como possuidores do poder moral de ter uma concepção do bem. Isso significa que eles não se veem como inevitavelmente ligados à busca da concepção específica de bem e de seus objetivos finais que abraçam em qualquer tempo dado. Em vez disso, como cidadãos, são considerados, em geral, como capazes de rever e mudar esta concepção com base em fundamentos razoáveis e racionais. Assim, é considerado permissível os cidadãos separarem-se das concepções de bem e fazerem o levantamento e a avaliação de seus vários objetivos finais”. (John Rawls, citado por W. Kymlicka in Filosofia política contemporânea. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 258.
Para uma análise mais detalhada desse tema, vale a pena ler o capítulo VII do livro de
John Rawls, Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002).
Explicação: O autor está chamando a atenção para nossa capacidade individual de escolher e procurar modos de vida que consideramos bons para nós, o que poderia ser denominado de autodeterminação. A vida em sociedade deve ser entendida como uma associação entre indivíduos tendo em vista a realização daquilo que cada um julga ser uma vida boa. Claro está que as escolhas podem ser reavaliadas porque nunca sabemos de antemão se realmente tomamos o caminho certo ou se o fim eleito é realmente um bem. Mas o que nos parece importante notar é o seguinte: Rawls usa o termo “cidadão” para se referir ao indivíduo. Isso quer dizer nossa inscrição social e nosso status político é marcado pela relação que estabelecemos com o bem que elegemos. Dizendo de outro modo, ser cidadão significa (basicamente) exercitar a autodeterminação na vida social e política. A sociedade é compreendida então como uma estrutura flexível onde os indivíduos buscam seus bens e o Estado tem como uma de suas principais diretrizes assegurar que os cidadãos possam dedicar-se ao cultivo de sua própria personalidade. Certamente isso não quer dizer que os liberais menosprezem a vida coletiva ou a necessidade que temos de partilhar nossas existências com nossos semelhantes. Um autor como Rawls está plenamente consciente de que a inserção social é uma dimensão ineliminável da condição humana. Porém, ao enfatizarem a autonomia individual diminuem a importância dos laços sociais e políticos para a realização pessoal. Para boa parte da tradição liberal, esses laços deixam de ser considerados como algo valioso em si mesmo para serem vistos primeiramente como meios para a satisfação dos interesses individuais.
Problemas: A concepção liberal coloca uma série de questões que mereceriam discussão. Por exemplo, se a liberdade individual requer uma sólida base política e social, como motivar os cidadãos a preservá-la quando não constitui um fim nela mesma? Que garantia teremos para nossa liberdade individual se não estivermos comprometidos com a liberdade da comunidade política a que pertencemos? Dizendo de outro modo: Nós poderíamos ser livres sob um governo ditatorial?
Comunitarismo.
Mantendo as mesmas reservas de nossa abordagem do liberalismo, vamos colocar em relevo somente aquilo que consideramos central na corrente de pensamento comunitarista. Antes de tudo, é preciso entender que os comunitaristas rejeitam o individualismo liberal em favor de uma vinculação forte entre indivíduo e comunidade. Segundo sua perspectiva, a vida que escolhemos, o bem que buscamos, nossa identidade, são definidos a partir de nossa inserção em uma comunidade, a partir de nosso pertencimento a uma tradição. O “eu” não é anterior aos bens que ele escolhe. Pelo contrário, ele é definido a partir de suas escolhas que nunca se dão em um vazio normativo e sim no interior de uma cultura. Para os comunitaristas (como Michael Sandel ou Alasdair MacIntyre), descobrimos quem nós somos a partir dos fins que escolhemos.
Mas a eleição desses fins é fortemente determinada pela tradição a que estamos vinculado. Os valores comunais, portanto, definem nossa identidade. Por esse motivo, os papéis sociais que desempenhamos e as relações sociais que estabelecemos são elementos decisivos para a condução de nossas próprias vidas.
Texto: “... a unidade da vida humana se torna invisível para nós quando uma separação nítida é feita entre o indivíduo e os papéis sociais que ele ou ela desempenha (...) ou entre as realizações de diferentes papéis [no interior] da vida de um indivíduo, de modo que a vida aparece como nada mais do que uma série de episódios desconexos” (Alasdair MacIntyre, Depois da virtude. Trad. de Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001, p. 344. tradução levemente modificada).
Explicação: MacIntyre está se referindo aqui ao fato de na sociedade moderna a separação entre indivíduo e comunidade implicar uma fragmentação da vida que atinge a própria integridade do eu. Trata-se, portanto, de uma crítica a nosso modo de vida atual e às filosofias que lhe correspondem, no âmbito das quais podemos situar a tradição liberal. Embora esta tradição pressuponha uma autonomia do eu, acaba por minar essa mesma autonomia ao dispersar a existência individual em esferas separadas que dificilmente comunicam entre si em um todo harmonioso. O comunitarismo acredita, então, que a autodeterminação não pode ser desvencilhada do contexto cultural em que os indivíduos se encontram. Por exemplo, a religião que adoto, a profissão que sigo, meu estado civil, minhas crenças sobre o que é certo ou errado, nada disso é independente da sociedade em que vivo. Nenhum desses elementos pode ser tomado como o produto de minha liberdade ou de minha capacidade individual de escolha. Antes, minha liberdade e capacidade são exercidas a partir do encontro com esses diversos fins e valores que me antecedem e que compõem o horizonte cultural em que existo. Antes do bem privado há um “bem comum” a partir do qual os indivíduos podem visar seus objetivos.
Partindo dessas premissas, podemos entender que a função do Estado para os comunitaristas deverá precisamente reforçar a “política do bem comum”. Sua atuação nada terá da “neutralidade” muitas vezes defendida pelos liberais. Em outras palavras, o Estado não deverá apenas assegurar que cada indivíduo possa exercer sua capacidade autodeterminação; esta capacidade não tem qualquer aplicação se não for desenvolvido o sentimento de que todos partilhamos valores comuns. O objetivo maior da ação política deve ser a promoção deste bem cultural comum, o que apenas poderá ser conseguido se for estreitado o elo entre indivíduo e comunidade. Como vemos, o comunitarismo coloca a ênfase em aspecto aparentemente negligenciado pelo pensamento liberal, vale dizer, no fato de que a existência individual não é autossuficiente do ponto de vista moral. A existência plena de um indivíduo contempla necessariamente as formas de inscrição da esfera pública. Por isso, os comunitaristas incentivam a participação dos cidadãos na vida cívica e têm uma noção mais robusta de cidadania, a qual não pode ser reduzida a mero exercício de direitos. Ser cidadão, na perspectiva comunitarista, significa atuar positivamente nas questões sociais e políticas que decidem a vida em comum. Por essa razão, os comunitaristas estão muito mais próximos do republicanismo do que os liberais.
Como não temos agora a oportunidade para explicitar em que consiste o republicanismo, fazemos somente uma indicação para encerrar nossa série de considerações acerca das relações entre indivíduo e comunidade. De maneira muito genérica, o republicanismo pode ser definido como uma perspectiva política que defende vigorosamente uma concepção ativa de cidadania. Na concepção republicana, a existência em sociedade requer a participação constante do cidadão nos afazeres cívicos e isso por uma razão muito simples: a liberdade individual apenas é garantida se o Estado em que vivemos for livre. À primeira vista, isso poderia parecer uma restrição da liberdade uma vez que está imposta uma obrigação. Mas é exatamente o contrário: trata-se de sua ampliação em uma forma de vida cujo sentido não é dado pela individualidade e sim pela inserção em um espaço público e pela afirmação do bem comum.
Problemas: 1- O comunitarismo não acabaria por ceder demais à coletividade e, assim, produzir um efeito contrário ao que deseja, isto é, em vez de levar ao reconhecimento da autodeterminação implicaria a supressão da liberdade individual? 2- O respeito à diversidade e diferença poderia ser um valor compartilhado por todos?
Conclusão:
As diversas abordagens do tema que tratamos nesses tópicos permitem compreender que a relação entre indivíduo e comunidade encontra formulações muito distintas, às vezes discrepantes, ao longo do tempo. Apesar disso, podemos identificar que na Antiguidade grega parece prevalecer uma perspectiva coletivista, isto é, a que privilegia a cultura e a tradição na determinação dos modos de vida dos indivíduos. Por outro lado, a partir do século XVI, o quadro se inverte e a reivindicação de autonomia do indivíduo sobre a comunidade parece ganhar força, sendo defendida por boa parte dos filósofos. Mas essas duas “tendências” (coletivista e individualista) não esgotam a complexidade da questão (podemos reconhecer um individualismo no contexto grego e um coletivismo na modernidade). Como quer que seja, nos dias atuais o debate está longe de ter se esgotado, polarizando mesmo boa parte da reflexão filosófica.
Bibliografia:
ARISTÓTELES. Política. Les politiques. Trad. de P. Pellegrin. Paris: Flammarion, 1993. Traduções para o português: Mário da Gama Cury.
Brasília: Editora da UNB, 1997 (3ª edição); Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BERTEN, André. Filosofia política. Trad. de Márcio Anatole de Souza Romeiro. São Paulo: Paulus, 2003.
HOBBES, Thomas. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979, Coleção Os Pensadores.
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Trad. de Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001.
MILL, John Stuart. Da liberdade. In: A liberdade/ O utilitarismo. Trad. de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PLATÃO Apologia de Sócrates. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1987, Coleção Os Pensadores.
-------- Críton. Trad. de Manuel de Oliveira Pulquério. In: Platão, Apologia de Sócrates, Críton. Lisboa: Edições 70, 2009 (2ª edição).
-------- República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001 (9ª edição).
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. Trad. de Lourdes Gomes Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Coleção Os Pensadores.
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Exercícios de Reflexão
1.1
– Quais as características do pensamento de Maquiavel em relação ao governo ou
ao Estado? Por que esse autor é considerado o pai do Estado moderno?
R: Maquiavel anuncia uma separação
fundamental para que a noção de Estado Moderno possa ser constituída, requer a
separação da religião e do Estado, e o que mais causa espanto, a separação da
ética e da política. Cria um tipo de política que o que vale é atingir os fins,
ou seja, a manutenção do poder mesmo que para isso seja necessário mentir e
dissimular. Maquiavel rompe com o que os antigos chamavam de justiça, para o
filósofo, a política não poderia ser aliada da justiça. Aqui há a separação do
que é comportamento público do que é comportamento privado.
1.2
– Quais as
características mais marcantes dos pensadores contratualistas? Quem são esses
autores e quais as principais ideias de cada um? Estabeleça uma comparação
entre a concepção por eles apresentada em relação ao governo ou Estado e o que
o pensamento antigo de Platão e Aristóteles havia produzido.
R:A característica mais marcante dos contratualistas era, como
o nome já diz, a exposição da necessidade de se manter um “contrato social”, pois separavam a
sociedade civil e o Estado. São eles: Hobbes, Locke, Rousseau, cada um com suas
especificidades, Hobbes acreditava que o estado de natureza humana era o “estado de
todos contra todos”, os seres humanos deveriam manter a vida que era seu bem
mais valioso. Na concepção de Hobbes o homem não é um ser político, o que
contradiz o pensamento de Aristóteles, que manteve a tese de que o homem seria
um ser essencialmente político. Para Hobbes para apaziguar os conflitos do
estado de natureza, seria necessário a criação do Estado ( governo) que surgiria
a partir de um pacto social ao qual fora estabelecido por seus membros e que
teria um “Leviatã”, ou seja, um tirano que mantivesse a todos sob a ordem das
leis do contrato. Locke da mesma forma que Hobbes acreditava que somente a
partir da formação de um Estado e de um
contrato social seria possível a manutenção da paz; para Locke o Estado deve
manter a ordem e a paz entre os homens, mas diferentemente de Hobbes, Locke
acreditava nas liberdades individuais e na possibilidade de ação de cada homem,
defendendo seus próprios interesses, garantindo a liberdade individual.
Rousseau ao contrário de Hobbes defendia que o homem em estado de natureza era
bom, mas a partir do convívio em sociedade se degenerou, Rousseau apresenta o
contrato social como modo de se manter a possibilidade de convívio social para
que não se perdesse a liberdade
individual. Mas de forma diferente de Locke para o qual a liberdade individual
deveria prevalecer, Rousseau acreditava que a partir do contrato social os
interesses pessoais seriam postos em segundo plano, prevalecendo a vontade do
coletivo, ou seja, a vontade geral.
1.3
- Qual a relação que o homem estabelece
(períodos antigo, medieval, renascentista, moderno e contemporâneo) com o
governo ou o Estado?
R: No período antigo o homem não
pode separar a vida pública da vida privada, participar da vida política
significava ser livre e consequentemente cidadão, aliando sempre a ética com a
política. No período medieval o homem tem uma relação ainda mantida por regras,
a vida e as regras deveriam manter uma dialética, a vida só seria digna se bem
regrada. No período moderno cria-se com Maquiavel a separação da vida pública e
privada, o homem não necessita da ética na vida pública, o Estado deve ser
aquele que garante a segurança, mas a qualquer custo, com a clivagem da ética e
da política. No período renascentista surge o interesse pela manutenção da vida
com participação política, mas não necessariamente com ética, os homens
necessitavam de garantias que os fizessem respeitar os direitos do outro, com o
contrato social surge a possibilidade de se garantir os direitos humanos. No
período contemporâneo, o que vemos é a apatia dos homens quanto às questões
políticas em relação ao outro, é perceptível o que acontece, grupos de pessoas
se juntam com a finalidade de garantir direitos individuais, como consequência
há uma cisão entre a sociedade civil e o Estado; cada um quer ser ouvido de
maneira individual, os grupos muitas vezes entram em conflito de interesses
gerando atrito, o governo costuma favorecer o que lhe é mais conveniente
naquele momento.
1.4
- Qual a contribuição da Independência dos Estados Unidos e da Revolução
Francesa para os Estados contemporâneos?
R: Os Estados modernos surgiram a partir da concepção de
República do Período Iluminista, tanto a Revolução Francesa, quanto a
Independência dos Estados Unidos foram fundamentais para o surgimento destes
Estados, a constituição passa a ser a base das leis e do modo de governo destes
Estados, sejam eles republicanos ou monárquicos, a participação política
resultando de um consenso jurídico. A formação de uma Declaração Universal dos
Direitos Humanos também foi inspirada no Período Iluminista, ( apesar deste
período não incluir todos os membros da sociedade).
Plano
de Aula sobre o filme: Ladrões de
Bicicletas ( 3ºs anos).
Atenção na estética do filme,
cinema neorrealista[1] italiano, é um filme
clássico e faz uma crítica em relação ao mundo, reagindo aos esquemas
tradicionais hollywoodianos, pela sua temática e estética. Os problemas sociais
e humanos passaram a ser valorizados como temas, demonstrando como a crise
social pode afetar as relações pessoais e familiares, e, em relação à forma,
optou-se por atores com fotogenia mais natural e cenas em locação, ou seja,
fora dos estúdios.
Questões
a serem respondidas e debatidas em aula:
1- É
possível identificar cenas do filme que mostram extrema condição de pobreza?
Quais?
2-
O
que o emprego de Antonio representava para a família?
3-
O
que simbolizava a bicicleta para Antonio Ricci?
O filme foi produzido em 1948
pelo diretor Vittório de Sica, o roteiro é ficcional, mas está muito próximo de
situações reais.
4-
Na
opinião de vocês, o drama do desemprego vivido pelo protagonista do filme e de
sua família é diferente das condições dos trabalhadores desempregados no Brasil
de hoje?
5-
Como
os trabalhadores brasileiros procuram seus empregos nos dias atuais? Quais são
as angústias e medos de quem ficou ou está desempregado? Pesquise sobre isso em
sua família.
6-
Por
que razão Antonio Ricci cometeu um delito?
7-
Que
impacto teve esse fato na vida do protagonista?
8-
Atualmente,
as pessoas se envolvem com os dramas alheios?
9-
O
que vocês pensam a respeito desse comportamento de indiferença perante o outro?
10- Ler o texto de Montaigne do
caderno do aluno nº 2, e debater com seus colegas de grupo sobre o texto em
relação ao filme.
11- Como é o conceito de justiça
segundo o filósofo Aristóteles? Façam uma relação com este conceito e com o que
vocês compreenderam sobre o filme.
12- Elaborem outra cena para a
finalização do filme, haveria para vocês a necessidade de um final feliz? Se
sim, explique por que. Este trabalho será feito pelo grupo de estudos, a
avaliação será pela leitura ou apresentação da nova cena para os demais
colegas.
Obs.: Será necessário pesquisar o
conceito de justiça em Aristóteles, tragam para a aula por escrito para que
possam consultar.
[1] O Neorrealismo italiano foi um movimento cultural surgido na Itália ao final da segunda guerra
mundial,
cujas maiores expressões ocorreram no cinema. Seus maiores expoentes foram Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino
Visconti, todos fortemente influenciados pelos filmes da escola do realismo poético
francês.
O
cinema neorrealista italiano caracterizou-se pelo uso de elementos da realidade
numa peça de ficção, aproximando-se até certo ponto, em algumas cenas, das
características do filme documentário. Ao contrário do
cinema tradicional de ficção, o neo-realismo buscou representar a realidade
social e econômica de uma época.
Segundo texto
Poder e Conflito
INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DO PODER (grupo 1)
Na vida cotidiana fazemos com frequência referência ao poder, aos seus limites e abusos, mas nem sempre estamos de acordo sobre o significado que se deve atribuir à palavra, que parece se aplicar a situações e contextos variados. Falamos do poder dos pais sobre os filhos, daquele do senhor sobre os escravos, assim como do professor sobre seus alunos sem que saibamos como essas realidades se conectam entre si. No meio dessa proliferação de sentidos, muitos pensadores buscaram uma definição geral do poder partindo da ideia de que ele se vincula ao fato de que existem pessoas que são capazes de levar outras a executar ordens e comandos com os quais não estão necessariamente de acordo e para os quais não foi dado nenhum consentimento explícito. Essa maneira de definir o poder, colocando em destaque o fato de que detém poder aquele que faz prevalecer sua vontade sobre a de outros, ajuda a esclarecer algumas questões, mas levanta também dúvidas, o que levou ao aparecimento, ao longo da história do Ocidente, de várias concepções diferentes a respeito do assunto. Algumas dessas concepções serão lembradas a seguir.
Para situar melhor nossa questão, é importante levar em conta que em todas as sociedades históricas encontramos o fenômeno do mando e da obediência. Isso mostra que a questão do poder é fundamental para os que pretendem compreender como vivemos e como poderíamos viver em conjunto. Isso implica em dizer que a investigação sobre a natureza do poder deve ser feita juntamente com aquela sobre o sentido da política, que é o objeto principal do ramo da filosofia – a filosofia política – que se ocupa em compreender os fundamentos da vida comum e não apenas explicar como ela funciona normalmente, que é a matéria das ciências sociais.
Agindo assim, estamos evitando uma abordagem muito genérica de nosso tema, que pode provocar muita confusão conceitual, para nos restringirmos à esfera da política e aos problemas do Estado. É claro que esse recorte não responde a todas nossas dúvidas sobre o tema. Deixamos de lado algumas questões interessantes como, por exemplo, aquela da psicologia dos indivíduos que mandam e daqueles que obedecem, que é muito importante, quando tentamos entender a obediência que alguns povos manifestam a tiranos e ditadores. Mas ganhamos uma clareza na definição de nosso objeto que nos permite avançar com segurança pelo vasto terreno aberto pela investigação sobre a natureza do poder.
Inicialmente o problema do poder expõe a necessidade de pensarmos o papel da violência em nossas vidas e na organização da vida política.
Isso se dá porque tendemos a pensar que poder e violência são a mesma coisa e só obedecemos quando somos forçados. Ocorre, no entanto, que essa identidade entre os dois termos nem sempre é verdadeira e podemos até mesmo dizer que ela quase nunca o é, pois os governantes que contam apenas com a força não conseguem se preservar em seus lugares. Se a violência aparece como um tema ligado àquele do poder, essa relação só pode ser compreendida se levarmos em consideração outras questões como aquelas da legitimidade dos regimes políticos e da liberdade dos cidadãos. Sem levar em consideração esses elementos não somos capazes de entender como funciona efetivamente um regime político.
Dentre os problemas que a filosofia política deve tratar, quando pretende estudar o poder, está aquele do conflito, que é um elemento constitutivo de toda experiência política. (Ver a OP: Indivíduo e comunidade I: conflito). Quando apontamos para esse tema, estamos partindo da constatação quase banal de que não há vida em comum sem que surjam divergências e disputas entre os que dela participam e também com aqueles que são dela excluídos. Essa observação serve para nos lembrar que um dos papeis principais do poder político é lidar com os conflitos seja arbitrando-os, seja impedindo seu aparecimento, seja criando instituições para acolhê-los. A maneira como um regime lida com conflitos diz muito sobre ele. Regimes autoritários tendem a negá-los e tentam evitar que eles coloquem a posição dos governantes em questão.
Regimes democráticos e republicanos buscam regulá-los por meio de leis e de instituições, mas não deixam de temê-los, pelo medo de que a divisão do corpo social possa ser uma ameaça para a sobrevivência do próprio Estado. Na verdade, desde a Antiguidade os conflitos foram temidos pelos pensadores políticos, que sempre viram na exacerbação das disputas internas um risco ainda maior do que as guerras com os vizinhos. Na Idade Média, a paz era considerada o bem maior da vida pública, postura que se conservou até o Renascimento, quando a maior parte dos filósofos enxergava na “luta de facções” um perigo enorme para a vida política. Mesmo na modernidade esse medo não se dissolveu, mostrando que a associação entre o tema do poder e aquele do conflito sempre fez parte do pensamento político. Mas o medo dos conflitos também aponta para a necessidade de se encontrar um terreno comum de entendimento, um Bem comum, que por sua natureza seria capaz fazer com que as pessoas superassem os conflitos, para criar algo superior ás vontades particulares, que quase sempre estão na raiz das disputas entre os indivíduos. Essa ideia serviu para mostrar que um dos parâmetros para se identificar um bom governo é sua capacidade de privilegiar os interesses comuns, promovendo assim um bem para todos, em detrimento das políticas que visam a satisfazer os desejos de apenas pequenas parcelas da população e que, no mais das vezes, colocam a unidade do corpo político em perigo.
Escolhendo tratar o problema do poder do ponto de vista da política não se está negando seus outros significados, e nem a possibilidade de encontrar nas outras esferas da vida social fenômenos correlatos àqueles que os filósofos estudaram na esfera do Estado. Trata-se apenas de uma escolha metodológica seguida por muitos pensadores e que evita os riscos de uma abordagem que pode se perder em abstrações e generalidades, que nada nos ensinam sobre os fatos que observamos em nossas vidas. (ver as orientações contidas na OP. Indivíduo e comunidade I: conflito)
Texto: “O poder não necessita de justificação, sendo inerente à própria existência de comunidades políticas; o que realmente necessita é legitimidade. O emprego das duas palavras como sinônimo é tão enganoso e confuso quanto a comum identificação entre obediência e apoio. O poder brota onde quer que as pessoas se unam e atuem de comum acordo, mas obtém sua legitimidade mais do ato inicial de unir-se do que de outras ações que se possam seguir”. Hannah Arendt. Da Violência. Trad. José Volkmann.
Explicação: No texto a autora sublinha a importância da afirmação da legitimidade do poder. Ou seja, para agir sobre a vida dos cidadãos, o poder precisa ter sua origem reconhecida por todos os que vivem numa determinada sociedade. Não basta estar de acordo com as leis, pois essas podem ser derivadas apenas da vontade do governante. A legitimidade nasce da concordância com as leis e com o fato de que essa concordância foi manifestada no momento em que elas foram concebidas. Isso ocorre, por exemplo, quando uma assembleia constituinte eleita por regras claras redige a Constituição de um país. À luz dessas considerações discuta os seguintes problemas:
1. Quando o Estado usa seu poder para praticar alguma forma de violência contra um cidadão, ele pode fazê-lo de forma legítima?
2. Poder e violência sempre andam juntos?
3. Mostre, segundo sua opinião, usando fatos da atualidade, quando o poder está sendo usado corretamente e quando deriva de um abuso.
A POLÍTICA NA ANTIGUIDADE (grupo 2)
Muitos das palavras que empregamos, quando nos interrogamos sobre o poder nos foram legadas pelos gregos. A própria ideia de que a política define um campo específico da ação humana foi proposta pela primeira vez pelos filósofos helênicos, que compreenderam que a maneira como se organizava a vida coletiva na Grécia do século V a.c era muito diferente da forma como viviam os outros povos conhecidos.
Em primeiro lugar, havia o reconhecimento que uma cidade só pode pretender ser autônoma em relação às outras se for responsável por suas próprias leis. Em segundo lugar, os gregos descobriram que os diversos regimes possíveis exigiam formas diferentes de organização das cidades e transformavam a natureza dos homens. Ao mesmo tempo em que apontavam para a originalidade da experiência que estavam vivendo, faziam uma crítica violenta dos regimes que não reconheciam a possibilidade de seus cidadãos agirem na arena pública. Os gregos não eram todos adeptos da democracia, o regime do mando do povo, mas tinham horror ao despotismo, o regime dos povos orientais, que não reconhecia a diferença, segundo eles, entre a esfera da política e a esfera da casa. Ter afirmado essa diferença foi um fator fundamental para o tratamento que diversos filósofos deram ás questões que nos interessam.
PLATÃO (428 a.c- 347 a.c).
Platão foi o primeiro grande pensador a legar para a posteridade uma série de diálogos nos quais foram desenvolvidos alguns dos pilares fundamentais da filosofia política do Ocidente. Em seu diálogo A República, ele tenta descobrir o que é a justiça e qual é a organização política mais justa para se viver. Depois de analisar as concepções mais influentes, na opinião de seus concidadãos, a respeito do problema da justiça, ele procura mostrar que só em um regime ideal, construído segundo os preceitos, que procura explicitar ao longo do texto, se poderia encontrar a justiça em sua plenitude. Nesse regime, os governantes deteriam o poder em razão de seu saber e isso levou-o a concluir que a filosofia deveria governar. Não se tratava de afirmar que os filósofos deveriam governar por pertencerem a um grupo social específico, que se dedicava à busca da sabedoria e à sua transmissão, mas sim que o regime deveria ser construído segundo um saber, que se identifica com a compreensão do que é o Bem, princípio do qual derivavam todas as outras coisas. Em todos os outros regimes existentes, como a realeza, a aristocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania, os homens se identificam e agem em conformidade com os princípios desses regimes. Na oligarquia, os governantes agem em função do poder que a riqueza lhes confere, como na democracia, é a busca por uma igualdade generalizada que move o homem democrático. No regime ideal, os homens se identificam com a filosofia e com a justiça e, por isso, são capazes de escapar das limitações de todos os outros regimes. Platão estava consciente das dificuldades para se construir um regime ideal, governado por sábios, e explicitou seu ponto de vista em diálogos como O Político e As Leis. Mas isso não foi suficiente para que ele abandonasse suas convicções e a ideia de que a realização plena das capacidades políticas dos homens só se dá quanto são deixadas de lado as particularidades dos regimes parciais.
Encontra-se na OP. Indivíduo e comunidade II. Lei e justiça uma discussão interessante sobre a origem da questão da justiça entre os gregos.
Texto: “Ora Glauco, recordemos os pontos em torno dos quais estamos de acordo para que uma Cidade seja eminentemente bem governada: comunidade das mulheres, comunidade das crianças e de todo o processo educativo; ocupações comuns na guerra como na paz; o governo deve estar nas mãos dos cidadãos, que mostraram ser os melhores tanto na filosofia quanto na guerra.(...). Eis outros pontos sobre os quais estamos de acordo: os chefes, uma vez designados, conduzirão os soldados para instalá-los nas residências sobre as quais falamos anteriormente e onde nenhum deles é proprietário de nada, mas nas quais tudo é comum. Além disso, estamos de acordo, acredito eu, se você se lembra, sobre quais devem ser seus bens mobiliários. – Sim, disse ele, eu me recordo que para nós nenhum desses homens deve possuir bens, que de fato pertencem aos outros, mas que assim como os guerreiros e os guardiões, eles devem receber dos outros, como salário por sua função de guarda, o necessário para a subsistência anual, sendo seu dever velar sobre eles mesmos e sobre a Cidade”. Platão. A República. VIII, 543.
Explicação: Nesse texto, Platão recapitula alguns pontos importantes de sua argumentação a respeito da estrutura da cidade ideal e do lugar que nela devem ocupar os que detém o poder. Deve-se notar que para ele a posse do poder supremo na cidade deve excluir a posse de bens materiais. Os governantes devem saber combinar a força, principalmente na guerra, com a filosofia, realizando o encontro entre saber e poder. A autoridade dos governantes deriva do acordo entre o poder que detém e o poder que exercem.
Questões.
1. Quais dos elementos da descrição da cidade ideal são os mais importantes para sua criação?
2. Como podemos nos servir de Platão para pensarmos a concentração de poder nas mãos dos que detém as riquezas, que observamos em várias sociedades contemporâneas?
3. Quais elementos dentre os expostos nos textos lhe parecem impossíveis de se realizar em sociedades como as nossas?
Exercício.
1.Procure imaginar uma sociedade ideal e analise se seria possível construí-la nos dias de hoje, levando em conta os fatores econômicos, sociais, políticos e morais.
2. Pesquise para saber se já houve no Brasil, tentativas de construir sociedades baseadas em utopias.
ARISTÓTELES (385 a.c- 322 a.c). (grupo 3)
Discípulo de Platão, Aristóteles se interessou como ele pelas características do regime ideal, mas investigou a mudança dos regimes de outro ponto de vista. Como seu mestre, ele admitia que a transformação dos regimes, a passagem de uma realeza para uma aristocracia, por exemplo, era um fato natural. Mas, contrariamente a Platão, Aristóteles não acreditava que as mudanças seguiam sempre a mesma ordem, que acabaria na degeneração final representada pela tirania. As mudanças eram naturais, mas podiam ocorrer em todos os sentidos. Além disso, ele constatava que na realidade de seu tempo os regimes mais corriqueiros eram a democracia e a oligarquia, fato que o levava a afirmar que a distinção essencial no interior de uma cidade, para se compreender a organização do poder, era aquela entre ricos e pobres. Aristóteles se preocupou também em definir o que era um cidadão, sobretudo diante do fato que a afirmação corrente segundo a qual era cidadão aquele que era filho de pais cidadãos nem sempre correspondia à realidade.
Aristóteles não imaginava como seu mestre um mundo constituído por ideias separadas da realidade empírica, que seria apenas uma forma degradada da verdadeira realidade. Por isso, ele adotou um ponto de vista que muitos chamaram de realista, para investigar a política.
Encontramos um exemplo desse procedimento em seu livro A Política. Cada regime é analisado segundo suas características próprias e o filósofo reconhece que muitas vezes as formas existentes são mais complexas do que os modelos imaginados pelos pensadores de sua época.
Essa postura diante da realidade permite que ele analise a tirania de um ponto de vista inovador. Aristóteles não era favorável a esse regime, mas isso não o impediu de tratá-lo como um regime qualquer. Nessa lógica, até mesmo um tirano pode aprender a conservar seu poder, se não
se deixar levar pelos excessos e pela violência. No polo oposto àquele da tirania se encontrava a república temperada, que é o melhor regime existente, por ser capaz de regular suas ações pelo meio termo, que também orienta a vida moral dos cidadãos. Essa concepção da política foi notavelmente influente nos séculos seguintes estando presente tanto entre os romanos quanto entre os medievais, que herdariam a ideia do bom governo e a transformariam à luz das crenças religiosas da cristandade.
Texto: “Devemos dar à noção de ‘bom governo’ um duplo sentido: é de um lado a obediência às leis em vigor, e de outro, a excelência das leis em vigor observadas pelos cidadãos, pois podemos também obedecer leis que são ruins”. Aristóteles. A Política. IV, 8, 1294 a 1.
“A causa universal e mais importante que cria entre os cidadãos uma disposição de alguma maneira favorável à mudança, deve agora ser estabelecida: é aquela sobre a qual já falamos. De um lado, aqueles que aspiram à igualdade suscitam revoltas, se eles acreditam que são desfavorecidos, quando são iguais dos que possuem vantagens excessivas, e, de outro lado, aqueles que desejam a desigualdade e a superioridade se revoltam também, se eles supõem que apesar de sua desigualdade eles não possuem uma parte maior que os outros, mas uma parte igual ou menor”. Aristóteles. A Política. V,2, 1302 a 20.
Explicação: No primeiro texto o autor faz menção à noção de “bom governo” que terá uma grande influência na maneira como muitos pensadores posteriores pensarão a questão do poder e de seu uso correto. O foco se encontra nas leis e em sua qualidade e não em fatores impossíveis de serem identificados na vida cotidiana dos Estados. No segundo texto, Aristóteles chama a atenção para o papel fundamental que a noção de igualdade tem na vida política. Procedendo dessa maneira, ele descarta também a ideia que as mudanças ocorridas nas cidades são fruto de processos naturais, que não precisam da ação humana para se realizar. Se é natural que os regimes mudem, é possível encontrar razões que nos ajudam a compreender as lutas pelo poder.
Questões e exercícios.
1. Por que é tão importante ser igual aos outros quando se é cidadão da mesma cidade?
2. A seu ver, os regimes descritos pelos pensadores da Antiguidade – realeza, oligarquia, aristocracia, democracia, tirania, etc.. – são todos iguais?
3. Um bom governo pode ser injusto e violento com seus cidadãos e ainda ser legítimo?
A MODERNIDADE E A QUESTÃO DO CONTRATO. (grupo 4)
Um aspecto importante do pensamento da Idade Média foi a síntese realizada por autores como Tomás de Aquino (1225-1274) entre os valores cristãos, expressos nos textos bíblicos, e algumas concepções herdadas de Aristóteles. Em que pese, no entanto, a influência do aristotelismo, prevaleceu nos autores medievais, desde Agostinho (354-430), a afirmação da preponderância do modelo de vida dedicada à contemplação religiosa, por oposição à vida ativa (dedicada à política). Essa maneira de compreender a vida pública acabou rebaixando-a a um patamar inferior àquele dos homens dedicados à vida religiosa e à Igreja. Os homens realmente virtuosos deveriam se preocupar com sua salvação e com o bem do próximo, mas deviam evitar ao máximo se misturar aos negócios públicos, fonte frequente de corrupção moral e que dificultavam ao extremo a vida dos cristãos interessados em seguir os ensinamentos dos Evangelhos.
A partir do Renascimento, que os historiadores costumam situar entre o século XIV e o século XVI, a recuperação de textos da Antiguidade, por escritores como Petrarca (1304-1374), serviu para colocar por terra os cânones dos se preocupavam com sua salvação e com o bem do próximo, mas pensavam ser seu dever evitar ao máximo se misturar aos negócios públicos, fonte frequente de corrupção moral. Um dos feitos principais do resgate dos valores do mundo antigo foi o fato de que a política readquiriu sua dignidade e voltou a estar no centro das preocupações de muitos pensadores. Com o aparecimento das nações modernas e de Estados fortes, livres do mando direto da Igreja, muitas questões tiveram de ser tratadas levando em conta a mudança no panorama político europeu e as consequências do abandono da ideia de que todo poder vem de Deus. Não se tratava de negar a importância da religião para a política e nem de se insurgir contra as verdades reveladas pelo Cristo. A pergunta que precisava ser respondida dizia respeito à origem e fundamento do poder político em sociedades que não tinham a pretensão de serem formas universais de governo, como a Igreja e o Império, e necessitavam afirmar sua identidade.
Diante desse quadro, o problema da soberania, ou seja, aquele da escolha da autoridade suprema, que não depende de outros para existir, passou a ocupar o centro do debate entre os filósofos políticos. Jean Bodin (1529-1596) afirmava que a soberania deve ser una e indivisível e que só assim uma comunidade pode reconhecer um poder que lhe confere identidade e estabilidade. Essa unidade deve ser expressa na forma de leis, que por sua vez constituirão a face dos diversos regimes possíveis. Em qualquer caso, a soberania de um Estado só se afirma se ele se transforma em um Estado de Direito. Essa maneira de apresentar o poder do Estado e a questão da soberania levou muitos intérpretes a associar o nome de Bodin ao surgimento das monarquias absolutas modernas. Mais importante, no entanto, do que discutir as preferências políticas do autor é reconhecer que ele formulou de maneira límpida os termos de um problema que desde a Idade Média preocupava os juristas, mas que só se tornou evidente com o aparecimento das nações modernas.
Um tema muito próximo daquele da soberania e que também ocupou um lugar importante na modernidade foi o da origem do Estado. Na Antiguidade, a afirmação da condição política do homem era o ponto de partida para a abordagem dessa questão. Aristóteles, por exemplo, partia da constatação da naturalidade do mando do pai sobre os filhos, para traçar a genealogia das formas de poder. A lei natural era o fundamento último para todo ordenamento humano, o que fazia das leis criadas pelos homens (nomos) algo necessário, mas que dependia de uma ordem transcendente para se afirmar. (Ver a esse respeito as orientações da OP –Lei e Justiça).
A principal mudança ocorrida na modernidade é que o debate sobre a origem do Estado passou a incluir uma nova possibilidade, que já havia sido esboçada na Antiguidade por alguns sofistas, que consideravam a lei como fruto exclusivo da vontade dos homens. Para os modernos, os homens não deixam, é claro, de estar submetidos às leis naturais sob vários aspectos, mas quando se trata de escolher a maneira como querem viver juntos, eles podem fazê-lo tendo por referência um contrato inicial, que deve contar com um acordo sobre os principais pontos que irão estruturar as comunidades políticas. Segue dessa afirmação que o poder político é sempre um artifício, uma criação dos homens, da qual eles necessitam para viver juntos e evitar que os conflitos destruam a possibilidade de uma vida sem perigos. Dessa afirmação da importância do contrato nasceram muitas das filosofias mais importantes representadas nas obras de filósofos como Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e muitos outros.
MAQUIAVEL (1469-1527)
Com Maquiavel começou uma transformação do pensamento político cujas consequências não se esgotaram até hoje. Seguindo, no tocante à forma, o modelo de textos medievais, que eram chamados de “espelho dos príncipes”, Maquiavel criou uma nova maneira de se pensar o poder, que está presente em seu livro mais famoso O Príncipe. Uma característica importante dos tratados que ele parecia imitar é que eles aconselhavam os governantes a praticar todas as virtudes cristãs, para obter êxito em suas ações. Maquiavel não pretendia desqualificar a ética, como afirmaram muitos de seus críticos, mas simplesmente mostrar que a principal preocupação de um governante é adquirir e conservar seu poder, e que ele não consegue sucesso nessa empreitada se se dedicar apenas à prática das virtudes cristãs. Para ele, a ética e a política possuem relações, mas não devem ser confundidas. Um governante que pretender, por exemplo, nunca ofender seus súditos, acabará sendo considerado fraco e perdendo uma parcela de seu poder. Um governante temido, mas que sabe usar da clemência na hora certa, continuará a governar, mesmo se não for muito amado pelos habitantes de sua cidade. A principal conclusão que devemos tirar da posição defendida pelo pensador italiano é que a política tem um campo de existência próprio, com suas determinações e suas zonas obscuras, que demanda um saber diferente daquele da ética, para ser compreendido. Para estudá-la em toda sua complexidade é preciso observar variáveis muito diferentes daquelas escolhidas pelos pensadores medievais.
Um primeiro ponto fundamental da filosofia de Maquiavel é o fato de que ele acredita que toda cidade está dividida quanto à maneira como as pessoas enxergam o poder. De um lado estão os que querem ocupá-lo e lutam por isso. Muitos dos temas tratados pelo pensador estão focados nesse grupo de homens e mulheres que querem comandar os outros. O outro grupo, formado pela maioria das pessoas, e que ele chama de “povo”, por oposição aos “grandes” do primeiro grupo, não deseja se apossar do poder, mas também não quer ser oprimido por ele.
Essa assimetria entre os grupos faz com que a arena política esteja sempre conturbada pelas disputas e pelos conflitos, uma vez que não basta ocupar o poder. Para mantê-lo é necessário continuar a agir corretamente em todas as situações, pois o governante é atacado o tempo todo tanto por seus concorrentes quanto pelos que temem a opressão.
Isso não quer dizer que Maquiavel temesse os conflitos e seus efeitos na cena pública. Em seu livro Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ele trata diretamente do tema afirmando que foi graças aos conflitos que Roma se tornou uma potência (Discursos, Livro I, 4). O pensador não pretende dizer que todos os conflitos são benéficos para a cidade, mas sim que não existe comunidade humana que não esteja submetida a eles e que, sendo naturais, não são necessariamente ruins para o corpo político. Nesse ponto, ele introduz uma nova divisão para mostrar que os conflitos romanos foram positivos para a cidade, porque ela estava capacitada para acolhê-los em suas instituições e assim dar vazão aos sentimentos populares que estão presentes na arena pública. Conflitos que apenas afirmam a divisão da cidade sem expressar a liberdade de suas instituições podem ser extremamente danosos para o corpo político. Conflitos que revelam as divisões internas da sociedade, mas permitem que ela se desenvolva e enfrente os novos desafios são fundamentais para a afirmação de sua potência.
Maquiavel acreditava que o melhor regime possível era o republicano, que assegurava a liberdade dos cidadãos e sua participação nos negócios da cidade. Ao mesmo tempo, ele afirmava que só nessas condições um povo pode construir uma sociedade rica e poderosa. As tiranias são o lugar da violência e da força, mas não do poder, pois estão nos limites da política e não podem durar e nem realizar grandes feitos. Mas as repúblicas também correm riscos, pois estão sujeitas ao que o estudioso italiano Genaro Sasso denominou “o paradoxo da potência”. Analisando a história de Roma, Maquiavel concluiu que, sua liberdade, e capacidade de lidar com os conflitos internos, criou as raízes de sua potência, mas ao mesmo tempo levou-a a um expansão desmesurada de seu território e de seu poder externo, o que acabou por destruir suas instituições de base.
Ao analisar o poder e seus efeitos, Maquiavel descobriu que não existem regras para a ação, que servem para todas as situações. Os homens precisam conhecer a história e também as forças de seu tempo, mas podem ser derrotados por circunstâncias que lhes escapam inteiramente.
A essa presença da contingência na política Maquiavel chamou de Fortuna, usando o nome da antiga deusa romana. Essa noção é importante porque nos lembra que o que um governante precisa fazer para manter seu poder não é o mesmo que pregavam os “espelhos dos príncipes” e nem mesmo o que pregavam alguns autores da Antiguidade. Ele recorre assim ao termo latino virtù para designar essa capacidade que os grandes homens de ação têm de saber se locomover de forma correta na hora adequada na cena pública. Não se trata de algo que se pode aprender com um manual, mas de uma habilidade que é da ordem da prática e da liberdade, mas que não se confunde nem com as virtudes cristãs e nem com a prudência grega. De certa maneira, a virtù é uma noção que se liga diretamente ás ações de conquista e manutenção do poder e, por isso, sua compreensão muda aquela da própria natureza da política.
Texto: “Resta agora ver como o príncipe deve tratar seus súditos e seus amigos. Como sei que muitos escreveram sobre isso, temo, escrevendo eu também, ser considerado presunçoso, porque eu me distancio, sobretudo na discussão dessa questão, do caminho seguido pelos outros. Mas minha intenção sendo a de escrever alguma coisa útil para meus leitores, pareceu-me mais pertinente me conformar com a verdade efetiva das coisas do que à imaginação que delas temos. Muitos imaginaram repúblicas e principados que nunca existiram. De fato, há uma tal distância entre a maneira como vivemos e aquela como deveríamos viver, que aquele que deixa o que se faz pelo que se deveria fazer, aprende muito mais a se destruir o que a se preservar”. Maquiavel. O Príncipe. Cap XV.
Explicação: Nesse texto Maquiavel coloca as bases de seu realismo político. O fundamento de sua filosofia se encontra na distinção entre o objeto da vida política tal como ela de fato existe – a conquista e a manutenção do poder –, e as formas que imaginamos para torná-la melhor.
Dessa maneira, ele mostra que o estudioso da política deve se concentrar nos acontecimentos reais, tais como vistos por nós e relatados pela história, para adquirir um verdadeiro saber sobre o poder.
Questões.
1. Como Maquiavel veria as utopias de nosso tempo? Identifique quem são nos nossos dias aqueles que não levam em conta a “verdade efetiva das coisas” ao analisar a política.
2. Qual deve ser para Maquiavel o principal objetivo do governante?
3. Na lógica do autor é possível sonhar com um novo mundo e manter o poder?
Exercício. A partir da leitura de um jornal, ou revista atual, procura analisar o comportamento de um homem público à luz do texto citado.
THOMAS HOBBES (1588-1679). (grupo 5)
Hobbes conheceu em seu tempo os efeitos da Revolução, que terminou com a execução do rei Carlos I, e as profundas transformações da cena política inglesa, que acabariam por reforçar notavelmente o poder do parlamento. Esses fatos foram decisivos para sua obra, assim como o contato com as ciências nascentes, que o levariam a tentar constituir para a política um saber que tivesse o mesmo grau de certeza dos novos saberes. Esse esforço resultou em uma obra vasta e diversificada cujo ápice se encontra em seu livro Leviatã.
Nesse tratado o autor se dedica em primeiro lugar a estudar a natureza humana e sua condição original, que ele chama de “estado de natureza”. Analisando o que seria o homem se não existissem as sociedades organizadas, ele chega à conclusão de que os homens são naturalmente egoístas e não buscam voluntariamente a cooperação. Como são dotados de razão, os homens são capazes de calcular o que é mais proveitoso e útil para suas vidas, mas isso não é suficiente, segundo o filósofo inglês, para que eles estabeleçam regras para uma vida em comum. Estudando a condição do homem natural, Hobbes chega à conclusão de que é preciso encontrar o motor para a formação das sociedades políticas em sentimentos diferentes daqueles que naturalmente movem a todos que são o desejo de glória e a vontade de obter bens que nos são úteis. Esses sentimentos são importantes, mas eles não conduzem os indivíduos para fora da esfera de seus desejos. Ao contrário, eles precisam da exclusão dos outros, pelo menos de parcelas significativas dos membros de um mesmo grupo, para se realizar.
Nessa lógica a única paixão que temos em comum no estado de natureza é o medo da morte violenta, o pavor de não ser capaz de sobreviver à luta contínua entre todos os homens. Hobbes acredita que para encontrar um fundamento sólido para o poder e garantir sua duração é preciso partir dessa paixão extrema: o medo. Uma vez que reconhecemos essa “igualdade” no temor, podemos abdicar, todos ao mesmo tempo, de nosso direito à autodefesa em proveito de um ente, que une a multidão em uma única pessoa. O filósofo resume esse passo dizendo: “Tal é a geração desse grande Leviatã, ou, para falar com mais respeito, desse deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e nossa proteção”. (Leviatã, II, cap XVII).
Esse grande soberano deve nos garantir a segurança, mas ele mesmo não faz parte do contrato. Ele foi criado por nós, artificialmente, para nos assegurar que não mais temos de temer uns aos outros, mas tornou-se um ente autônomo, detentor de um grande poder. Uma das dúvidas comuns sobre o pensamento de Hobbes é quanto à natureza desse poder imenso concentrado nas mãos do Estado, ou de um só monarca. Não pode ele se transformar em algo terrível a partir do momento que não é limitado nem mesmo pelo contrato que o instituiu? Não há como negar a pertinência dessas dúvidas, mas, para compreender como o autor lidava com essas objeções, é preciso lembrar que o Leviatã perde muito de sua força se ele destrói aquela de seus súditos. Podendo fazer tudo o que quiser, ele não tem razão alguma para abusar de seu poder.
Esses argumentos não são suficientes para afastar todas as dúvidas dos leitores quando à natureza do poder do Leviatã, mas permitem compreender que uma das principais funções do soberano é justamente nos retirar do estado de natureza no qual prevalece a guerra de todos contra todos, para nos fazer viver em uma sociedade de paz e segurança. Só uma força enorme, acredita Hobbes, pode realizar esse feito. Ao mesmo tempo o soberano deve levar em conta que o direito de natureza é aquele que nos diz que devemos procurar por todos os meios fugir da morte violenta e garantir nossa sobrevivência. Ao criarmos o Estado, tudo se passa como se essa função, – garantir nossas vidas contra os ataques dos outros –, passasse a ser o direito e o dever do soberano. Para Hobbes seu poder é enorme, porque é imensa sua obrigação para com seus súditos.
JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778)
Rousseau foi ao mesmo tempo filho do século das Luzes, época que depositou grandes esperanças no progresso da humanidade a partir do uso da razão, e um de seus críticos mais argutos. Contrariamente à Hobbes, Rousseau acreditava que o homem no estado de natureza era um ser meigo e desprovido de instintos agressivos. Na verdade, ele acreditava que os homens, quando vivem junto da natureza não necessitam muito uns dos outros, salvo para perpetuar a própria espécie. A necessidade, no entanto, pode levá-los a perder a condição vantajosa da solidão original para forçá-los a um convívio, com o qual sairão perdendo. Essa passagem do estado natural para o estado social não se faz abruptamente. No longo processo de degenerescência, os homens desenvolvem a linguagem, que altera para sempre a relação entre eles.
Esse passo é fundamental para a compreensão de como no processo de formação das sociedades é possível chegar a um contrato social, que é o estágio final do longo caminho da natureza em direção da criação do Estado.
Na caminhada em direção à formação das sociedades políticas, descrita no Discurso sobre a origem da desigualdade, o aparecimento da propriedade privada é um momento decisivo. Segundo o filósofo não há nada de natural no fato de que alguém delimite um espaço de terra e declare que ele lhe pertence por inteiro. A partir desse ponto, as diferenças de riqueza acabam por diferenciar os homens também do ponto de vista do poder, que no estado primitivo era quase o mesmo para todos e se resumia na capacidade de governar suas próprias vidas. A passagem do estado de natureza para o estado social é descrita por Rousseau como um processo de corrupção da natureza humana que, uma vez iniciado, não pode mais ser detido. Uma vez perdida a transparência original dos sentimentos e a liberdade que experimentamos quando vivemos na natureza, somos incapazes de impedir o movimento que pouco a pouco solapa a base do estado de natureza.
Ao final da instalação da corrupção no seio das comunidades, que foram sendo criadas ao longo do tempo, depois que o homem perdeu sua inocência original, só a formação de uma comunidade política baseada na igualdade e na liberdade pode garantir aos homens uma vida menos terrível do que aquela que ele conheceu nos estágios anteriores. O fundamento do contrato é a vontade geral, que para Rousseau nos ajuda a compreender a natureza do poder soberano, que não pode ser dividido, nem alienado. Contrariamente a Hobbes, no entanto, o poder soberano encontra seus limites justamente no fato de que ele só pode pedir de seus súditos aquilo que foi acordado no contrato e que é essencial para o interesse comum. Para além desses limites cada cidadão conserva intacto seu direito às suas coisas e à sua liberdade.
Texto: “O homem nasceu livre e por toda parte se encontra a ferros. Um acredita ser o senhor dos outros e não deixa de ser mais escravo que os outros. Como essa mudança aconteceu? Eu ignoro. O que pode torná-la legítima? Acredito poder responder a essa questão”. Rousseau. Do Contrato Social. Livro I, cap 1
“Se o interesse comum é o objeto da associação, é claro que a vontade geral deve ser a regra das ações do corpo social. Este é o princípio geral que eu estabeleci. (...). Por qualquer caminho que nós retornamos ao princípio chegamos sempre à mesma conclusão: a saber, que o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade de direito, que eles se engajam todos sob as mesmas condições e devem gozar das mesmas vantagens”. Rousseau. Do Contrato Social (Primeira versão). Cap VI.
“O mais forte não é jamais suficientemente forte para ser sempre o senhor, se ele não transforma sua força em direito e a obediência em dever”. Rousseau. Do Contrato Social. Livro I, cap 3.
Explicações: Rousseau combate no último trecho a ideia muito comum em sua época, mas também na nossa, de que a origem de todo poder é a força. Ao contrário, o poder só é legítimo se retira sua capacidade de ação do consentimento explícito dos membros do corpo político. Essa reunião dos membros do corpo político não é, no entanto, um simples agregado de vontades particulares, mas uma vontade, a vontade geral, que não representa a soma dos interesses particulares, mas justamente aquilo que a transcende e pode ser considerado como um interesse comum. É nesse sentido que a vontade geral é o fundamento de todo Estado baseado na igualdade de seus cidadãos perante a lei e na liberdade de participação nos negócios públicos.
Questões.
1. Para Rousseau um regime cheio de desigualdades entre seus cidadãos, como observamos em muitas sociedades atuais, pode ser legítimo, ou seja, estar de acordo com a vontade geral, que é para ele o fundamento do poder?
2. Poder e violência podem ser considerados a mesma coisa na lógica do autor?
3. Em nossos dias você acredita que ainda podemos falar de interesse comum, à luz do que Rousseau afirma?
Exercício. Descreva quais são a seu ver os termos principais do “contrato social” que rege nossas relações no espaço da escola atual.
O MUNDO CONTEMPORÂNEO: DEMOCRACIA, TOTALITARISMO, JUSTIÇA. (grupo 6)
Embora o termo contemporâneo costume ser empregado para os acontecimentos do século XX, podemos recuá-lo até o século XIX, entendendo que foi nesse momento que se definiram as principais características das sociedades ocidentais, que no curso de duzentos anos viram nascer o regime democrático moderno e os governos totalitários. Foi no século XIX, com efeito, que se consolidou a herança republicana da Revolução Francesa, ao mesmo tempo em que John Stuart Mill (1806-1873) dava um passo decisivo na consolidação do pensamento liberal ao insistir que o utilitarismo de Bentham (1748-1832) assim como o pensamento de Saint-Simon (1760-1925) não davam conta da complexidade das realidades sociais. Muito influenciado pelo empirismo de Hume (1711-1776), Mill foi um grande adepto da democracia parlamentar e da distribuição do poderes que ela implica e ao mesmo tempo um defensor incansável da liberdade dos indivíduos que, segundo ele, deve possibilitar a cada um escapar de todos os constrangimentos que não são absolutamente necessários para a existência das sociedades políticas. Sua obra Sobre a Liberdade é um verdadeiro pilar do liberalismo moderno e de seus valores. Sua insistência na defesa das liberdades individuais o levou a uma oposição tanto aos governos autoritários quanto à tirania de uma maioria, que poderia acabar por abolir as diferenças que necessariamente existem entre indivíduos autônomos.
Em outro terreno o pensamento utópico de vários matizes se incorporou á história fazendo surgir desde projeto de sociedades sem Estado, como no caso dos pensadores anarquistas, até versões importantes da história como lugar da afirmação de uma necessidade, que nos conduziria ao fim da própria história. O socialismo de Marx (1818-1883) foi sem dúvida a corrente de pensamento mais importante nesse terreno
e levou a uma compreensão diferente tanto da natureza do poder quanto do conflito. Para o pensador, as sociedades são sempre atravessadas por conflitos que refletem a distribuição do poder entre as diversas classes sociais. Para ele, o poder é sempre poder econômico, derivado da posse dos meios de produção e é esse desequilíbrio na base econômica das sociedades que está na raiz das outras formas de desigualdade, inclusive aquelas observadas no terreno da política.
Os acontecimentos terríveis da primeira metade do século XX, – as duas grandes guerras e o assassinato de milhões de pessoas nos campos de concentração de várias nações –, marcaram o aparecimento de problemas, que não podiam ser estudados com os conceitos herdados das diversas tradições do pensamento político. Talvez o mais importante tenha sido o surgimento de regimes, classificados como totalitários, cujo maior exemplo foi o regime nazista da Alemanha, cuja maneira de lidar com os conflitos e de estruturar o poder, divergiam profundamente do que até então fora conhecido até mesmo nas tiranias e nos despotismos diversos. Uma das características mais importantes desses regimes é o fato de que eles destroem completamente as instituições políticas e sociais, isolando os homens uns dos outros e contribuindo com isso para o desaparecimento da política em todas suas formas. No tocante ao poder, os regimes totalitários recorrem ao terror, como forma de evitar qualquer ameaça ou dissidência. O terror, aliado à solidão dos habitantes do país, associado a uma ideologia que procura fornecer uma explicação total dos motivos que levaram os governantes a ações tão extremas quanto a aniquilação de milhões de pessoas, formam a base dos regimes totalitários. A obra de Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo constitui um material essencial para entender o significado desses acontecimentos para a filosofia política.
Na segunda metade do século XX, os trabalhos pioneiros de Hannah Arendt (1906-1975) e de Claude Lefort (1924-) sobre a natureza dos regimes totalitários e sobre a democracia e seus fundamentos acabaram influenciando uma retomada de temas ligados à tradição republicana, que repercutem até hoje nos debates sobre o republicanismo em vários países. Entre os temas que ganharam destaque nas últimas décadas entre os pensadores políticos estão o da liberdade política entendida como participação na vida pública, o papel da virtude na ação dos diversos atores políticos e a crítica à ideia de que a democracia é um regime destinado a provocar a apatia dos cidadãos. No terreno mais próximo da tradição liberal, a obra de John Rawls (1921-2002) levou a uma renovação espetacular do pensamento político. Crítico do utilitarismo, que desde o século XIX dominava uma parte importante do pensamento político anglo-saxônico, Rawls retornou à filosofia de Kant e à teoria do contrato, para afirmar que uma sociedade livre deve necessariamente buscar a justiça como um “ideal social”, voltado para uma repartição justa dos direitos e deveres, mas também das vantagens sociais. Para fundamentar essa busca, Rawls propõe dois princípios, que devem estar na raiz das principais instituições constitutivas de uma sociedade livre e que ele chama de “estruturas de base”. O primeiro princípio afirma que cada membro de uma dada sociedade “deve ter um direito igual ao sistema o mais amplo possível de liberdades de base iguais para todos e que seja compatível como o mesmo sistema para todos”. Já o segundo princípio, que teve um grande impacto sobre o debate em torno do significado da justiça, sustenta que no tocante as desigualdade sociais e econômicas, devemos em primeiro lugar cuidar para que elas sejam organizadas de tal forma que elas tragam aos mais desfavorecidos as maiores vantagens, ao mesmo tempo em que garante o acesso de todos aos cargos e vantagens do sistema social.
Texto: “A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas à imagem da soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender apropriar-se dela. A democracia alia estes dois princípios aparentemente contraditórios: um, que o poder emana do povo; outro que esse poder não é de ninguém. Ora, ela vive dessa contradição. Por pouco que esta se arrisque a ser resolvida ou o seja, eis a democracia prestes a se desfazer ou já destruída. Se o lugar do poder aparece, não mais como simbolicamente mas realmente vazio, então os que o exercem não são mais percebidos senão como indivíduos quaisquer, como compondo uma facção a serviço de interesses privados e, simultaneamente, a legitimidade sucumbe em toda a extensão do social; a privatização dos agrupamentos, dos indivíduos, de cada setor de atividade aumenta: cada um quer fazer prevalecer seu interesse individual ou corporativo”. Claude Lefort. A invenção democrática. Trad. Isabel Marva Loureiro.
Explicação: O autor mostra nesse trecho que a democracia não é apenas um regime regido por leis, fundado na vontade popular, mas também aquele no qual um cidadão qualquer, ou grupo político não pode se identificar inteiramente com o poder. Se de um lado há uma dimensão concreta do poder, que está presente nos diversos cargos e magistraturas, há também um aspecto simbólico e imaginário, que faz com que em uma democracia ele não seja nunca uma propriedade privada de um de seus membros.
Questões.
1. Quais são a seu ver as principais ameaças às sociedades democráticas atuais?
2. Uma democracia pode se transformar num regime totalitário assim como Platão acreditava que ela se transformava em tirania? Faça uma pesquisa para descobrir as principais diferenças entre as democracias do mundo antigo e as nossas.
3. Uma sociedade baseada apenas no consumo e na defesa dos direitos dos consumidores ainda pode ser chamada de democracia?
QUESTÕES ATUAIS SOBRE O PODER. ( grupo 7)
A civilização ocidental passou nas últimas décadas por um intenso processo de transformações, que o escritor Adauto Novaes caracterizou como um período de “mutações”, sugerindo com isso que as mudanças rápidas pelas quais passam nossas sociedades estão apontando para um mundo diferente daquele que emergiu quando do desenvolvimento do capitalismo industrial e das sociedades de massa. A principal característica dessas mutações é o papel que as técnicas e as ciências passaram a ocupar na vida de todos nós. Ainda no século XX, vários pensadores se preocuparam com o papel que a técnica estava ocupando na esfera da política. Nas últimas décadas, o que assistimos foi uma verdadeira aliança entre a tecno-ciência e o poder político. O próprio discurso científico se transformou em uma forma de poder na medida em que pretende ser a fonte de toda autoridade. Hoje em dia, se quisermos afirmar algo como verdadeiro, é fundamental associarmos o que estamos dizendo à ciência, sob pena de sermos criticados por adotarmos um discurso que não possui todas as garantias da razão. O problema dessa postura é que ela esconde as fragilidades da própria ciência e acaba se transformando em um discurso absoluto, que legitima qualquer ação que parece decorrer das leis da natureza investigadas pelos mais diversos saberes. Dizendo de outra forma, poder e autoridade parecem migrar da esfera política para aquela do discurso científico, pretendendo substituir os mecanismos de decisão coletiva pela palavra dos especialistas.
Na esteira do aparecimento de um poder legitimado pelo discurso tecno-científico surge um mundo no qual os aparatos técnicos são parte integral de nosso cotidiano. Cada vez mais falamos de prolongar a vida por meios artificiais, duplicar o corpo por meio de clonagens, suprimir o homem de várias cadeias produtivas, descobrir a química do cérebro para produzir novos seres humanos. Um mundo de ficção científica emerge, sem que saibamos ao certo as consequências dessas mutações para a esfera da política e mesmo da intimidade. Nesse universo em transformação radical teremos mais uma vez de pensar os fenômenos do poder que, como vimos, fizeram parte da história do pensamento político desde a antiguidade. Esse desafio deve levar em conta que cada época tem seus próprios problemas, derivados de suas condições históricas concretas, mas está ao mesmo tempo vinculada ao passado, que a viu emergir e pode nos fornecer as pistas para a compreensão de suas origens. Com a emergência do poder das tecno-ciências, estamos diante da afirmação de um poder que pretende se libertar do passado, e mesmo do futuro, para nos fazer viver em um presente eterno. Se apenas a razão instrumental é válida, e se somos visados apenas como consumidores de bens e não mais como cidadãos de um regime de liberdade e direitos, é mister reconhecer que estamos diante de um novo mundo e de novas formas de poder. Michel Foucault (1926-1984) já alertava no século passado que o poder estava se convertendo em biopoder, ou seja, ele visa antes de mais nada se afirmar pelo domínio do corpo e de suas necessidades. Um exemplo da realização do biopoder, que só se tornou possível com a associação da política com o mundo da técnica, foi o que ocorreu nos campos de concentração, que se disseminaram por várias partes do mundo no século XX. Nesses espaços fechados, os seres humanos são destituídos de toda dignidade para serem visados apenas como um amontoado de energia, que pode ser destruído a qualquer momento pela mão dos que governam. Esse cenário preocupante é uma indicação dos caminhos que deve trilhar toda reflexão atual sobre o tema desse módulo na atualidade.
Temas complementares.
1. O impacto do progresso das tecno-ciências na organização das sociedades democráticas.
2. A substituição do homem por máquinas gera efeitos negativos na vida cotidiana?
3. Estamos vivendo num mundo de ficção científica, que vai além de nossa imaginação?
4. É possível prever os efeitos das transformações técnicas em nossas vidas?
5. As ciências possuem uma autoridade maior quando se trata de estudar as questões de poder?
Bibliografia complementar
Cassirer, Ernest. O mito do Estado. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1976.
Quirino, Célia; Souza, Maria Teresa Sadek (orgs). O pensamento político clássico. São Paulo: Tao, 1980.
Chevallier, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro, Editora Agir, 1976.
Bobbio, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Editora da UNB, 1992.
Caillé, Alain; Lazzeri, Christian; Senellart, Michel (orgs). História argumentada da filosofia moral e política. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.
Fim
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Indivíduo e Comunidade (PARA TODOS OS GRUPOS)
Introdução:
Os termos “indivíduo” e “comunidade” parecem possuir significados opostos. Por um lado, “indivíduo” quer dizer “o que não pode ser dividido”, estando associado, portanto, às noções de “unicidade”, “unidade”, “propriedade”, “particularidade”, ou seja, a tudo aquilo que não é partilhado. Por outro lado, “comunidade” se refere àquilo que é “comum”, àquilo que é de todos (sem ser de ninguém em particular), àquilo que concerne a todos. Logo, a palavra “comunidade” está relacionada à vida em comum, à existência compartilhada, ao passo que “indivíduo” diz respeito à autonomia e à independência. Porém, esse contraste terminológico não deve fazer esquecer que, no que concerne à existência humana, não é possível falar de indivíduo sem referir-se à comunidade, e vice-versa. Isso significa que o ser humano encontra-se sempre inserido em uma comunidade. É preciso, contudo, ter em mente que essa inserção não é idêntica àquela que identificamos em outros animais, como as abelhas ou as formigas. No caso do ser humano, a vida em comunidade não resulta meramente de uma tendência instintiva (embora tenha relação com as necessidades). Além disso, ela está ligada àquilo que chamamos de cultura, o que permite pensar em uma série de diferenças para com a vida animal. Por exemplo, a presença da linguagem ou, ainda, a existência de um conjunto de princípios que orientam o comportamento (a moral e as leis). Tendo isso em mente, podemos perceber que a existência em comunidade (e poderíamos também dizer: a vida em sociedade) é de importância fundamental para a constituição de quem nós somos como indivíduos. Por esse motivo, o que entendemos por nossa “individualidade” está em estreita dependência da vida em comunidade. Os animais, nesse sentido, não possuem “individualidade” (a não ser que tomemos este termo em uma acepção biológica e, nesse caso, são indivíduos de uma espécie). Logo, falar de uma existência individual absolutamente autônoma e independente para o homem é uma abstração que não encontra correspondência na realidade.
Antiguidade.
Platão (428/348 a.C.) (GRUPO 1)
Há pelo menos duas maneiras de abordar o problema da relação entre indivíduo e comunidade no pensamento de Platão. A primeira delas – correspondendo à fase inicial de sua filosofia, em que Platão está mais fortemente influenciado pelo pensamento socrático – formula a questão nos seguintes termos: a existência de um ser humano (em seu sentido mais amplo: vital, educacional, moral) depende inteiramente da comunidade em que vive (o que, na época de Platão, era chamado de pólis). Sendo assim, o indivíduo deve ser identificado com o cidadão, isto é, a pólis constitui o âmbito no qual sua vida adquire significação. Mas a pólis não se confunde com a simples agregação de pessoas. Ela é simultaneamente um espaço ético e legal. Por esse motivo, o bom cidadão é aquele que, por um lado, toma para si a obrigação de cuidar do seu próprio aperfeiçoamento moral e dos outros e, por outro lado, se compromete com a obediência das leis. Nos textos que Platão escreveu, Sócrates encarna esse ideal de cidadania.
Texto: “Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos [para a cidade].”
(Platão, Apologia de Sócrates, 30 b. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1987, p. 15. Coleção Os Pensadores).
Explicação: Essas palavras de Sócrates (escritas por Platão e supostamente pronunciadas diante de um tribunal que terminará por condená-lo à morte) mostram que ocupar-se de si e dos outros é a principal tarefa do bom cidadão. Mas em que exatamente essa função consiste? Basicamente, trata-se de incentivar a si mesmo e aos demais a priorizar os bens da alma, os quais podem ser definidos como virtudes. Em uma ordem hierárquica, as virtudes estão acima dos bens do corpo e das riquezas. E o que elas são? Para Sócrates (tal como Platão o apresenta) essas virtudes estão ligadas às ideias que orientam nossas ações, as ideias que nos fazem agir de uma determinada forma e não de outra. Por exemplo, uma pessoa justa é aquela que age de acordo com a ideia da justiça. Em termos práticos, isso quer dizer que ela age conforme aquilo que acredita ser justo. A virtude, para Sócrates, é precisamente esse conhecimento que nos leva a agir. Assim, o homem corajoso é aquele que sabe o que é a coragem e, por causa disso, age segundo a virtude. Ora, essa opinião acerca do que é a justiça (ou a coragem, ou outra virtude qualquer) nem sempre é fundamentada. Muitas vezes apenas acreditamos saber o que é justo, mas se formos indagados sobre a essência da justiça descobriremos que na verdade a ignoramos. E nesse caso não somos realmente virtuosos. Sócrates, então, dedicava sua vida a ajudar seus concidadãos a fazer essa pergunta a si mesmos, a examinarem a si mesmos a fim de saber se conhecem realmente o que acreditam saber.
Essa atividade socrática pode não ter a ver diretamente com a política. Mas no fundo, ela tem um grande efeito político porque permite ao cidadão (ao examinar a si mesmo) reformular seu papel na cidade e colocar em xeque os princípios que determinam sua prática política. E esse cidadão com desenvolvida consciência crítica não vai deixar de interrogar a validade dos princípios que fundamentam a vida em comum. Como vemos, a consciência crítica dá origem a um distanciamento crítico do indivíduo frente aos valores comumente partilhados. Isso não levaria a uma completa desestabilização da ordem social e política? Para Platão a resposta é não.
Texto: “Obedece-nos, pois, Sócrates, a nós que te criamos, e não preze os teus filhos, a tua vida, ou o que quer que seja, mais do que a justiça, para que, ao chegar ao Hades[1], possas alegar isto em tua defesa aos que ali governam.” (Platão, Críton, 54 b. Trad. de Manuel de Oliveira Pulquério. In: Platão, Apologia de Sócrates, Críton. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 82).
Explicação: Nessa passagem (situada na prisão de Atenas no momento em que Sócrates aguarda o cumprimento de sua pena de morte), Platão cria um diálogo entre as Leis da cidade e Sócrates. A partir do que elas dizem a ele podemos inferir que o mesmo Sócrates que critica as ideias e valores aceitos defende uma obediência incondicional (ou quase) à lei. Essa aparente contradição pode ser esclarecida da seguinte maneira: a lei é o que dá coesão à pólis, é o que permite que os homens possam se beneficiar de uma vida em comum. Mesmo que ela seja injusta, ou que sua aplicação seja injusta, um mal maior, para o indivíduo e para a comunidade, será cometido se a lei for desrespeitada. Por essa razão, Sócrates prefere se submeter à injustiça decorrente de um abuso da lei do que cometer a injustiça de infringir a lei. O único limite que ele estabelece para a obediência é o caso em que a lei ordena alguém a cometer uma injustiça. E a razão é simples: do ponto de vista de Sócrates, cometer uma injustiça é o pior dos males possíveis, maior do que sofrer uma injustiça.
Com esse tema da justiça, chegamos ao segundo modo de abordar o tema indivíduo/comunidade no pensamento platônico. Uma preocupação maior de Platão é pensar quais são as condições para que entre indivíduo e comunidade reine uma perfeita harmonia. O filósofo está convencido dessa possibilidade porque há, segundo ele, uma correspondência entre a alma do ser humano e a ordem política da cidade.
Texto: - E o homem justo não será então em nada diferente da cidade justa, no que respeita à noção de justiça, mas será semelhante a ela?
- Semelhante, disse ele.
- Mas uma cidade justa pareceria ser precisamente justa quando os três grupos naturais presentes nela exercessem cada um sua tarefa própria e ela nos pareceria moderada, ou ainda corajosa e sábia, em razão das afecções e disposições particulares desses mesmos grupos.
- É verdade, disse ele.
- Logo, meu amigo, entendemos que o indivíduo, que tiver na sua alma estas mesmas classes, merece bem, devido a estas mesmas qualidades, ser tratado pelos mesmos nomes [os das virtudes referidas acima: moderação, coragem e sabedoria] que a cidade.
- É absolutamente forçoso, disse ele.
(Platão, República, 435 b- c. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 189. tradução modificada)
Explicação: Nesse diálogo, Platão mostra Sócrates conversando com Glauco sobre o tema da justiça na alma e na cidade. Fica claro que ele acredita que tanto uma quanto outra obedecem aos mesmos princípios. Pela mesma razão, é possível falar de virtude não somente para se referir às qualidades morais individuais, mas também para se referir ao modo como a pólis se organiza. Uma alma “bem organizada” se caracteriza por uma correta disposição de seus diversos elementos (as “três classes” a que o texto se refere: os desejos, as paixões – ou impulsos – e a razão). Quando os desejos e afetos estão devidamente orientados pela razão a alma possui uma estrutura harmônica. Na cidade deve ocorrer a mesma coisa. Nela também temos três classes (os cidadãos que trabalham e se ocupam de atividades econômicas, os que se ocupam da guerra e da defesa da cidade e aqueles cidadãos que são encarregados de governar). Se quem exerce a função de comandar os outros é um homem sábio e capaz de comandar a si mesmo, então está assegurada a possibilidade da pólis ser unida e justa. A justiça, para Platão, pode ser compreendida como essa boa ordem na alma e na cidade. Ela pode igualmente ser definida da seguinte maneira: quando cada uma das partes da alma de cada cidadão cumpre sua função própria sob o governo da razão e quando cada cidadão faz o mesmo no âmbito da cidade, temos um indivíduo e uma pólis justos. Resta, por fim, observar que essas duas ordens justas estão referidas uma à outra. A justiça como virtude individual é imprescindível para a existência de uma cidade justa, assim como a cidade justa é o lugar em que a alma encontra a possibilidade de exercer a justiça e se tornar ela mesma justa.
Problema: Para Platão, a boa e justa organização da cidade deve obedecer às diferenças naturais entre os homens. Assim, cada um ocupará o seu lugar (de soldado, de artesão ou de governante) segundo os seus dons naturais. Você vê algum problema nesta ideia?
Sugestão de Atividade: Assista ao filme Sócrates, dirigido por Roberto Rossellini em 1974, e discuta as questões trabalhadas neste tópico.
Aristóteles (384-322 a.C.)
Como vimos, Platão, ao aproximar os princípios morais dos princípios políticos, explicita a natureza dos fortes laços que unem indivíduo e comunidade. Em Aristóteles vamos encontrar ponto de vista semelhante, embora formulado de maneira distinta. Um trecho de seu livro que trata da política ajudar a entender a questão.
Texto: “É manifesto (...) que a cidade faz parte das coisas naturais e que o homem é por natureza um animal político, e aquele que está fora da cidade, naturalmente, claro, e não por acidente das circunstâncias, é ou um ser degradado ou um ser sobre-humano” (Aristóteles, Política, 1253 a -5. Trad. de P. Pellegrin. Paris: Flammarion, 1993, p. 90.)
Explicação: Para Aristóteles, a existência do homem implica seu pertencimento a uma comunidade política. Apenas os animais ou os deuses escapam à condição política. É nesse sentido que a vida política é entendida como natural ao homem. Isso não significa que a cidade é natural assim como o mundo que nos cerca, o universo, as plantas ou os outros animais. A cidade é natural ao homem, ou ainda, a natureza humana é caracterizada por uma inclinação a viver em sociedade. E devemos entender esta última afirmação da seguinte maneira: o homem apenas se realiza como tal se vive em uma pólis. A inclinação, portanto, nada tem de acidental.
Essa série de considerações nos leva a pensar sobre a ideia do bem humano. Para Aristóteles, a natureza política do homem está associada ao fato de que somente vivendo em comunidade ele pode encontrar as condições necessárias para alcançar o bem supremo, isto é, a felicidade. A finalidade primeira da cidade é, assim, a concretização desse bem superior, o que confere à associação política a primazia sobre todas as demais formas de associação, incluindo a família. Esse bem, contudo, não deve ser confundido com algo externo ao homem ou com uma coisa que ele poderia possuir e perder. O bem que se realiza na vida política corresponde a uma atividade, a um modo de vida. A qual atividade Aristóteles está se referindo? Ora, para pertencer efetivamente a uma pólis é requerido o exercício da cidadania, isto é, participar diretamente da vida política, seja exercendo cargos (que, nesse contexto, recebiam a denominação geral de “magistraturas”) seja frequentando as instâncias decisórias (como os tribunais e as assembleias deliberativas). Em outras palavras, o cidadão deveria conhecer não apenas a situação de governado, mas também a de governante, contribuindo, individualmente, para o bem do todo. É claro que o bem individual está implicado no bem do todo, e Aristóteles está convencido de que essa vinculação é essencial. Porém, o bem individual não está simplesmente contido no bem comum. Na verdade, cuidar do bem comum é já exercer uma atividade virtuosa, é já experimentar uma vida boa. A participação na vida pública é a ocasião para que o ser humano desenvolva suas virtudes e este desenvolvimento é inerente à ideia de realização e de felicidade. Logo, não há felicidade sem política.
Problema: As concepções de Platão e Aristóteles fazem pensar em uma série de questões que podemos colocar a respeito de nossa realidade política. Por exemplo, como devemos agir quando uma lei nos parece injusta? Quais relações éticas e política mantêm entre si? Uma pessoa pode ser realmente feliz a despeito da felicidade alheia? Tente responder a essas questões e, a partir da leitura do texto, elabore outras.
https://www.youtube.com/watch?v=buhLlfTVPwI – Filme “A maça”.
Modernidade.
Com Hobbes veremos se cristalizar uma perspectiva filosófica que colocará em termos muito diferentes das anteriores o problema da relação entre indivíduo e comunidade. Para iniciar sua análise, poderíamos lembrar uma frase escrita por Plauto (um autor latino de comédias) muitos séculos antes de Hobbes e que diz o seguinte: “O homem é o lobo do homem”. Na introdução de um de seus livros (Do Cidadão), Hobbes reproduz essa frase, o que nos autoriza a inferir que ela funciona como uma espécie de emblema de toda filosofia que coloca em dúvida a tese da sociabilidade natural do ser humano. Se o homem é o lobo do homem, então ele não está, por natureza, inclinado a estabelecer laços duradouros com seu semelhante, os quais requerem a presença de sentimentos morais e de uma consciência ética. Mas o que está aí em questão não é tanto a ideia da maldade natural do ser humano e sim o fato de que os homens, sendo por natureza iguais, necessariamente entram em conflito. O principal objetivo de Hobbes ao nos lembrar dessa frase é mostrar que a vida em comunidade não decorre naturalmente da condição humana. Antes, ela é uma construção dos homens. Uma vez realizada essa construção, o homem, diz ainda Hobbes, torna-se “um Deus para o homem”. Reformulemos, então, o problema. Para Hobbes, autores como Aristóteles estão equivocados ao afirmar que o homem é um animal político porque a natureza não dispõe os homens para estabelecerem a vida em comunidade. Diferentemente do que pensavam os antigos, os homens, para Hobbes, não são naturalmente desiguais. Todos detêm basicamente o mesmo poder e as mesmas capacidades, mas também os mesmos desejos. Logo, o conflito é uma possibilidade que não podemos eliminar. É nesse contexto que faz sentido a existência de uma sociedade política. As relações políticas (assim como a vida em comunidade) são um artifício cuja finalidade primeira é proteger os homens deles mesmos. Atendida essa necessidade, os homens encontram as condições adequadas para o desenvolvimento de suas habilidades (intelectuais, afetivas, econômicas), constituindo o que poderíamos chamar de “cultura”.
Ora, a realização desse objetivo não pode ser assegurada sem alguma forma de coerção ou de uso da força. E a razão é muito simples: se os homens não estão naturalmente dispostos a se associarem, torna-se necessária a presença de uma instância política (o Estado) autorizada a exercer o poder para fazer com que respeitem as leis. Essa coerção não se confunde, contudo, com a mera violência. Vale lembrar que o Estado, como invenção humana, existe para atender aos interesses humanos e por isso sua origem remonta à vontade dos cidadãos.
Texto: “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária (...) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de mantê-los em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos...” (T. Hobbes, Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 103. Coleção Os Pensadores).
Explicação: A “restrição sobre si mesmos” de que fala Hobbes é precisamente o poder político na forma da soberania, isto é, o domínio autorizado do Estado (o Leviatã) sobre os cidadãos. Esse domínio autorizado permite aos homens sair da condição “miserável” em que se encontram naturalmente e viver mais “satisfatoriamente” em uma comunidade. Do ponto de vista de Hobbes, a condição originária dos seres humanos (que ele denomina por vezes de “estado de natureza”) é a vida isolada, a qual, no entanto, apresenta inúmeras desvantagens. Está claro, então, que a associação é o melhor recurso. Mas como ela não decorre de uma inclinação natural, somente a criação de um poder “externo” aos seres humanos será capaz de mantê-los obedientes às leis e compromissos em que se engajam. Para concluir, vale a pena observar que Hobbes concede ao mesmo tempo muito e pouco ao indivíduo frente à comunidade. Concede muito porque ele é pensado como originalmente independente dela. A comunidade é posterior ao indivíduo, é composta por eles para a consecução de fins que são individuais. Por outro lado, Hobbes concede pouco porque sem a comunidade, sem a presença do poder político, os indivíduos são incapazes de levar uma vida satisfatória, estando submetidos aos impulsos de suas paixões e entregues à violência. A justiça, que em Platão estava também na alma dos homens, para Hobbes é fruto de um pacto e é, assim, exterior a eles.
Problema: Hobbes descreve o indivíduo em seu “estado de natureza”, independentemente de toda a sociedade. Quais são as características deste indivíduo, segundo o filósofo? Você considera possível discorrer sobre o ser humano fazendo abstração de toda sociedade?
Sugestão de Atividade: Assista ao filme Ensaio sobre a cegueira e, tomando por referência teórica o pensamento de Hobbes, estabeleça uma discussão sobre as seguintes questões: Que tipo de relação os indivíduos manteriam entre si se não houvesse o poder do Estado? O que justifica a existência do Estado?
John Locke (1632-1704) (GRUPO 3)
Escrevendo algumas décadas depois de Hobbes, Locke ainda está fortemente influenciado pelo mesmo contexto político e ideológico. Sob diversos aspectos, sua proximidade com Hobbes é evidente. Mas, no que toca ao nosso tema, há uma diferença que merece ser salientada. É verdade que Locke aceita a tese que afirma ser a associação política um artifício dos homens e, por isso, resultado de sua vontade. Locke também reforça o sentimento de que a existência individual é irredutível à coletividade. Mas diferentemente de Hobbes, ele acredita que o “estado de natureza” (isto é, a condição originária em que os homens se encontram antes do estabelecimento do poder político) é marcado pela sociabilidade. Em outras palavras, a sociabilidade antecede o político.
Texto: “Tendo Deus feito o homem uma criatura tal que, segundo seu próprio juízo, não lhe era conveniente estar só, colocou-o sob fortes obrigações de necessidade, conveniência e inclinação para conduzi-lo para a sociedade, assim como o proveu de entendimento e linguagem para perpetuá-la e dela desfrutar” (John Locke, Segundo tratado sobre o governo. Trad. de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 451). “Sendo todos os homens (...) naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente uns com os outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte” (Ibidem, p. 468).
Explicação: Nessas duas passagens do tratado de Locke podemos identificar a presença de um elemento “clássico”, isto é, que remonta à filosofia antiga, e de um elemento moderno. Locke entende que a condição natural destina o homem à vida social. Por outro lado, a segunda passagem nos mostra que a associação política (e, consequentemente, o poder político) se funda sobre o consentimento dos homens, o que é o mesmo que dizer que decorre de um ato voluntário, que Locke (assim como Hobbes) chama de pacto. Logo, o corpo político (o Estado em sua acepção mais ampla) não é natural. Uma possibilidade de resolvermos essa aparente contradição consiste em marcar a diferença entre sociedade e sociedade civil, a primeira referindo-se a qualquer associação duradoura entre seres humanos e a segunda expressando sua igual submissão a um poder político legitimamente instituído. O que podemos inferir dessa diferença? Primeiramente, Locke postula a existência de uma comunidade ética anterior à formação do Estado. Criador dos homens, Deus, como faz com toda a natureza, estabelece leis às quais cabe aos homens cumprir. O homem é o executor da lei de natureza (ou da lei divina). Sendo assim, os seres humanos já se encontram vinculados (moralmente) entre si e já dispõem de claros princípios de ação que os obrigam independentemente da construção da sociedade política. Esses deveres são acompanhados, contudo, por direitos, os quais podem ser resumidos da seguinte forma: todos podem punir a todos aqueles que infringem a lei de natureza; todos os seres humanos têm igual direito à propriedade. Este último ponto requer explicação: a condição do homem, para Locke, é a de proprietário. Cada ser humano é, inicialmente, proprietário de seu corpo e dos frutos de seu trabalho. O trabalho, aqui, deve ser tomado na mais ampla acepção possível. Ao fazer o esforço de colher uma maçã na árvore, um homem realizou um trabalho e isto lhe confere direito de propriedade sobre a maçã. Logo, a propriedade é inerente à condição humana visto que a sobrevivência (que é, aliás, uma obrigação moral) implica apropriar-se. A sociedade civil vem a se constituir porque a vida na comunidade original apresenta algumas deficiências. Não há garantia de que esses direitos serão respeitados. Além disso, cada homem, obrigado a obedecer e a fazer obedecer às leis divinas, é suscetível a cometer excessos no cumprimento dessa função. Como diz Locke, cada um é “juiz em causa própria”. Sendo assim, é necessária a instituição de uma instância mediadora, acima dos poderes individuais para fazer vigorar a legalidade e o direito. Ora, essa instância é o poder político. Ele tem, portanto, como tarefa sanar as inconveniências da condição natural, respeitando a liberdade, a igualdade e a propriedade naturais. Para Locke não poderia ser de outro modo, pois a razão de se formar o Estado é precisamente o desejo de preservar esses bens. O pensamento de Locke deixa transparecer a complexidade da relação entre indivíduo e comunidade. Por um lado, não é possível ao ser humano levar uma vida isolada dos demais. Por outro lado, esse encontro não pode implicar a destituição da individualidade nem dos direitos naturais. O ser humano, ao ingressar em uma sociedade política, deve renunciar a alguma parte de seus direitos, mas jamais poderá fazê-lo integralmente, sob o risco de colocar-se em uma situação pior do que aquela anterior à formação do Estado.
Fica reforçada com Locke a noção de individualidade jurídica e é essa mesma noção que está na base de boa parte de nossas reivindicações políticas atuais. Quando exigimos que o Estado “cumpra seu papel”, estamos, via de regra, fazendo apelo a esses direitos que acreditamos anteriores ao poder político (e que lhe conferem sua razão de ser).
Problema: 1- O conceito de propriedade é central no pensamento de Locke. Identifique como este conceito permite que Locke conceba uma comunidade política que se concilia com os direitos do indivíduo. 2- Você concordaria com a ideia de Locke de que a propriedade é um direito natural?
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) (GRUPO 4)
Com Rousseau vemos uma nova formulação do problema indivíduo/comunidade no âmbito do pensamento político. Leitor dos autores do século XVII (como Hobbes e Locke), Rousseau tentará integrar um forte sentimento da individualidade com um igualmente forte pertencimento a uma associação política, mas por um caminho distinto daquele seguido por seus antecessores. Em uma contundente crítica à sociedade de seu tempo, Rousseau acredita que o homem vive iludido pela aparência, preso às convenções e aos jogos sociais e, por conseguinte, descentrado de si mesmo. A esfera social é aquela em que o ser humano valoriza as opiniões alheias em detrimento de sua autonomia e autenticidade. A vida social arruína, portanto, a espontaneidade, a liberdade, a independência naturais à condição humana. Mais ainda, degrada o homem, introduzindo em sua alma os vícios e deteriorando seu corpo. “O homem que medita é um perverso”, diz nosso autor em uma conhecida passagem de seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754-5). Rousseau recusa, assim, o pessimismo antropológico de matriz agostiniana que tende a identificar o mal com a condição humana após a queda. O mal, para ele, corresponde a uma distorção da natureza operada pela vida em sociedade. De acordo com esse raciocínio, na condição originária (no “estado de natureza”) o homem está ao abrigo de toda iniquidade, desconhecendo em que consiste o mal. É um estado marcado pela liberdade e pela igualdade.
A crítica de Rousseau à vida social se estende à vida política. As formas de organização política que conhecemos na atualidade exercem o mesmo efeito nocivo sobre a natureza humana, reduzindo o homem a uma condição miserável.
Textos: “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se a ferros”. “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece”. (Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social. Trad. de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 22 e 32. Coleção Os Pensadores”).
Explicação: Essas duas passagens, respectivamente dos capítulos I e VI do primeiro livro do Contrato social (1762), mostram, em primeiro lugar, a discrepância entre a condição natural de liberdade e a vida em sociedade marcada pela servidão. A segunda passagem, por sua vez, indica que a solução para essa dificuldade se encontra no estabelecimento do “contrato social” por intermédio do qual os homens poderão reencontrar sua liberdade perdida. Rousseau está sugerindo uma solução política para um problema que é detectado na própria esfera política.
O “contrato social” deve ser entendido como o único expediente possível para impedir a dominação do homem pelo homem. E em que consiste esse contrato? Trata-se, diz Rousseau, de uma “alienação total” de cada indivíduo, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. Esse é o modo pelo qual a igualdade e a liberdade são restauradas porque essa entrega mútua, na qual cada um “põe em comum sua pessoa e todo seu poder”, submete e libera. Submete todos a uma vontade comum (que Rousseau chama de “Vontade Geral”) e libera, no mesmo movimento, o indivíduo do jugo de um outro. Em outras palavras, a solução, para Rousseau, está em todos submeterem-se igualmente à lei (que deve ser a expressão da Vontade Geral).
Como não podemos detalhar a argumentação de Rousseau, vamos reter ao menos o seguinte: a “alienação total” de que falar Rousseau não significa dissolução da individualidade. Pelo contrário, significa sua conservação naquilo que ela tem de mais original: a liberdade. Essa “entrega” à comunidade não sufoca o sentimento da individualidade, mas permite que ela seja exercida sem ameaçar o outro ou a si mesma. A associação política, nos moldes concebidos por Rousseau, certamente exige o sacrifício de algumas inclinações e interesses pessoais em benefício da coletividade. Mas a perda é muito pequena quando comparada ao ganho que traz consigo essa “renúncia”. A individualidade natural é precária e a autonomia que a acompanha é limitada. Em contrapartida, a individualidade livre conhecida em um Estado livre é incomparavelmente superior. Rousseau a chama de “liberdade moral” e a qualifica como “a única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo”. É possível inferir, então, que nosso autor tem em alta conta a comunidade política e está longe de condenar sem restrições a passagem do estado de natureza ao estado político. Mais ainda, Rousseau parece estar convencido de que a solução para os conflitos que eventualmente opõem o indivíduo à comunidade é de natureza política.
Problema: Tente formular alguma justificativa para a ideia de Rousseau de que a liberdade dos homens na comunidade política é superior à liberdade do homem no estado natural.
John Stuart Mill (1806-1873). (GRUPO 5)
Poucos autores foram tão sensíveis à questão que viemos examinando quanto John Stuart Mill. Com efeito, o exame da relação entre indivíduo e comunidade ocupa um lugar importante em sua obra, como podemos ver nos ensaios Sobre a liberdade e Utilitarismo. Um dos principais objetivos de Mill é delimitar uma esfera para a ação individual que não fira e ao mesmo tempo não seja ferida pelos interesses coletivos.
Embora sob diversos aspectos as análises de Mill convirjam com a de Locke, sua preocupação é de outra ordem, assim como a natureza de sua argumentação. Não é apelando a uma individualidade jurídica que Mill irá resolver as tensões entre sociedade e individualidade, mas dando ao problema um tratamento moral na forma da aplicação do que ele chama de “Princípio de Liberdade”. Este princípio postula que somente no caso de algum dano (harm) ser cometido a alguém a liberdade pode ser restringida. Caso contrário, a individualidade deve ser respeitada. Mas esse princípio, por si só, não é suficiente para justificar a restrição da liberdade. Por isso, é preciso que ele seja referido a um outro princípio que é o da Utilidade (que Mill herda de Jeremy Bentham e submete a severas críticas). Em linhas gerais, este último princípio diz que as ações são consideradas moralmente corretas quando contribuem para promover a felicidade do maior número (de pessoas), e moralmente incorretas quando resultam no contrário.
Não escapa a Mill a inevitável tensão entre o interesse da comunidade e as aspirações individuais. O Princípio da Liberdade tem por finalidade instaurar um equilíbrio de modo a evitar que a promoção do bem individual prejudique a coletividade e de modo que o bem-estar da sociedade não impeça que os indivíduos procurem satisfazer seus próprios interesses do modo que julgar conveniente.
Texto: “A sociedade pode executar e executa seus próprios mandatos; e se expede mandatos equivocados no lugar dos corretos, ou quaisquer mandatos a respeito de coisas nas quais não deveria interferir, pratica uma tirania social mais terrível do que muitas espécies de opressão política, uma vez que (...) penetra mais profundamente nos detalhes da vida, escraviza a própria alma, deixando poucas vias de fuga.
Não basta, portanto, a proteção contra a tirania do magistrado; é necessária também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes, contra a tendência da sociedade a impor, por outros meios além da penalidade civil, as próprias ideias e práticas como regras de conduta aos que dela dissentem; aguilhoar o desenvolvimento e, se possível, a impedir a formação de qualquer individualidade que não esteja em harmonia com seus costumes, e a compelir a todos os tipos humanos a se conformar a seu próprio modelo”. (John Stuart Mill. Da liberdade. Trad. de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 10-1. A tradução foi levemente modificada).
Explicação: As análises de Mill ultrapassam o âmbito da política e colocam abertamente o problema da oposição entre indivíduo e comunidade como uma questão social e moral. Ao se referir a uma “tirania da sociedade”, o autor está chamando a atenção para um problema premente na sociedade contemporânea: a força da maioria, do grande número em uma sociedade que é essencialmente democrática (por essa razão, vale a pena aproximar o trabalho de Mill àquele que Alexis de Tocqueville – seu contemporâneo – realiza em seu livro Da democracia na América).
Nesse contexto a igualdade não é apenas um princípio político, mas torna-se o princípio social fundamental. Consequentemente, o poder da sociedade impor padrões de conduta sobre seus membros é altamente reforçado. Além disso, esse poder, como Mill observa, é mais insidioso porque não é exercido somente pelas vias institucionais (os magistrados a que ele se refere). Associada aos costumes trata-se de uma forma de poder que se exerce cotidianamente, diretamente sobre os indivíduos, incitando-os a se conformar a determinado padrão. A liberdade individual apresenta-se, assim, como um ponto de resistência ao domínio da maioria, sem provocar ruptura, no entanto, com a ordem social.
Vale lembrar que Mill a define, de início, negativamente, ou seja, como o limite do poder que a sociedade pode exercer sobre o indivíduo.
Positivamente seu conteúdo não pode ser preciso, uma vez que as aspirações individuais são tão variáveis quanto os próprios indivíduos.
Problemas: As reflexões de Mill nos auxiliam a pensar algumas dificuldades de nossa própria experiência social. Por exemplo, em que termos podemos conceber na atualidade a tensão entre individualidade e sociedade? Em quais ocasiões podemos perceber o que Mill denomina de “tirania da sociedade”? Em que medida os diversos tipos de preconceitos (social, racial, religioso) podem ser considerados sob a perspectiva de Mill?
Contemporaneidade. (GRUPO 6)
No âmbito da filosofia política da atualidade, podemos destacar duas correntes que defendem pontos de vistas muito distintos sobre o problema de que viemos abordando. A primeira delas é o Liberalismo e a segunda o Comunitarismo. Deve ficar claro que a referência a elas está longe de esgotar a complexidade das perspectivas políticas contemporâneas. Mas, tendo em vista nossos fins, elas parecem constituir uma polaridade que esquematiza satisfatoriamente as principais maneiras de tratar a questão.
Liberalismo.
Em primeiro lugar, precisamos lembrar que sob o termo “liberalismo” há uma variedade muito grande de doutrinas pertencentes, por sua vez, a campos diversos do pensamento (filosofia, sociologia, economia). Em segundo lugar, faremos uma apropriação muito particular da tradição liberal a fim atender a nossos propósitos, negligenciando, por isso, um tratamento mais rigoroso dessa corrente de pensamento. Nossa estratégia será então destacar um ponto comum aceito por quase todos aqueles que se abrigam (ou são abrigados) sob a denominação “liberal”. Este ponto comum está atrelado à noção de “indivíduo”. Para os liberais (dentre a gama de autores, podemos citar John Rawls, Ronald Dworkin e Thomas Nagel, para ficar com os mais conhecidos), apenas podemos compreender a sociedade e a política se nos referirmos à individualidade que está em seu fundamento. Assim, os bens sociais não podem ser separados dos bens individuais e os princípios políticos devem estar orientados por esses mesmos bens. Dizendo de outra maneira, os liberais são aqueles para os quais nas questões políticas e sociais a primazia deve ser concedida aos direitos individuais e à liberdade. Não deve causar espanto o fato de Locke e Mill serem comumente identificados como membros da tradição liberal.
De modo muito esquemático, poderíamos dizer que a concepção liberal defende uma espécie de “individualismo” segundo a qual a sociedade não pode ser tomada como um fim em si mesma. Antes, ela integra um conjunto de procedimentos com os quais os indivíduos podem satisfazer suas aspirações. A condição necessária para tanto é que a sociedade não apresente um modelo de vida impositivo, único, devendo comportar e acolher (na medida do possível) as diferenças, o que nos leva a concluir que, de acordo com esse ponto de vista, a sociedade deve ser necessariamente pluralista. A conservação desse tipo de sociedade requer que a ação política do Estado ofereça as condições necessárias para que cada indivíduo encontre a oportunidade para exercer sua autodeterminação.
Texto: “Como pessoas livres, os cidadãos reconhecem-se mutuamente como possuidores do poder moral de ter uma concepção do bem. Isso significa que eles não se veem como inevitavelmente ligados à busca da concepção específica de bem e de seus objetivos finais que abraçam em qualquer tempo dado. Em vez disso, como cidadãos, são considerados, em geral, como capazes de rever e mudar esta concepção com base em fundamentos razoáveis e racionais. Assim, é considerado permissível os cidadãos separarem-se das concepções de bem e fazerem o levantamento e a avaliação de seus vários objetivos finais”. (John Rawls, citado por W. Kymlicka in Filosofia política contemporânea. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 258.
Para uma análise mais detalhada desse tema, vale a pena ler o capítulo VII do livro de
John Rawls, Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002).
Explicação: O autor está chamando a atenção para nossa capacidade individual de escolher e procurar modos de vida que consideramos bons para nós, o que poderia ser denominado de autodeterminação. A vida em sociedade deve ser entendida como uma associação entre indivíduos tendo em vista a realização daquilo que cada um julga ser uma vida boa. Claro está que as escolhas podem ser reavaliadas porque nunca sabemos de antemão se realmente tomamos o caminho certo ou se o fim eleito é realmente um bem. Mas o que nos parece importante notar é o seguinte: Rawls usa o termo “cidadão” para se referir ao indivíduo. Isso quer dizer nossa inscrição social e nosso status político é marcado pela relação que estabelecemos com o bem que elegemos. Dizendo de outro modo, ser cidadão significa (basicamente) exercitar a autodeterminação na vida social e política. A sociedade é compreendida então como uma estrutura flexível onde os indivíduos buscam seus bens e o Estado tem como uma de suas principais diretrizes assegurar que os cidadãos possam dedicar-se ao cultivo de sua própria personalidade. Certamente isso não quer dizer que os liberais menosprezem a vida coletiva ou a necessidade que temos de partilhar nossas existências com nossos semelhantes. Um autor como Rawls está plenamente consciente de que a inserção social é uma dimensão ineliminável da condição humana. Porém, ao enfatizarem a autonomia individual diminuem a importância dos laços sociais e políticos para a realização pessoal. Para boa parte da tradição liberal, esses laços deixam de ser considerados como algo valioso em si mesmo para serem vistos primeiramente como meios para a satisfação dos interesses individuais.
Problemas: A concepção liberal coloca uma série de questões que mereceriam discussão. Por exemplo, se a liberdade individual requer uma sólida base política e social, como motivar os cidadãos a preservá-la quando não constitui um fim nela mesma? Que garantia teremos para nossa liberdade individual se não estivermos comprometidos com a liberdade da comunidade política a que pertencemos? Dizendo de outro modo: Nós poderíamos ser livres sob um governo ditatorial?
Comunitarismo.
Mantendo as mesmas reservas de nossa abordagem do liberalismo, vamos colocar em relevo somente aquilo que consideramos central na corrente de pensamento comunitarista. Antes de tudo, é preciso entender que os comunitaristas rejeitam o individualismo liberal em favor de uma vinculação forte entre indivíduo e comunidade. Segundo sua perspectiva, a vida que escolhemos, o bem que buscamos, nossa identidade, são definidos a partir de nossa inserção em uma comunidade, a partir de nosso pertencimento a uma tradição. O “eu” não é anterior aos bens que ele escolhe. Pelo contrário, ele é definido a partir de suas escolhas que nunca se dão em um vazio normativo e sim no interior de uma cultura. Para os comunitaristas (como Michael Sandel ou Alasdair MacIntyre), descobrimos quem nós somos a partir dos fins que escolhemos.
Mas a eleição desses fins é fortemente determinada pela tradição a que estamos vinculado. Os valores comunais, portanto, definem nossa identidade. Por esse motivo, os papéis sociais que desempenhamos e as relações sociais que estabelecemos são elementos decisivos para a condução de nossas próprias vidas.
Texto: “... a unidade da vida humana se torna invisível para nós quando uma separação nítida é feita entre o indivíduo e os papéis sociais que ele ou ela desempenha (...) ou entre as realizações de diferentes papéis [no interior] da vida de um indivíduo, de modo que a vida aparece como nada mais do que uma série de episódios desconexos” (Alasdair MacIntyre, Depois da virtude. Trad. de Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001, p. 344. tradução levemente modificada).
Explicação: MacIntyre está se referindo aqui ao fato de na sociedade moderna a separação entre indivíduo e comunidade implicar uma fragmentação da vida que atinge a própria integridade do eu. Trata-se, portanto, de uma crítica a nosso modo de vida atual e às filosofias que lhe correspondem, no âmbito das quais podemos situar a tradição liberal. Embora esta tradição pressuponha uma autonomia do eu, acaba por minar essa mesma autonomia ao dispersar a existência individual em esferas separadas que dificilmente comunicam entre si em um todo harmonioso. O comunitarismo acredita, então, que a autodeterminação não pode ser desvencilhada do contexto cultural em que os indivíduos se encontram. Por exemplo, a religião que adoto, a profissão que sigo, meu estado civil, minhas crenças sobre o que é certo ou errado, nada disso é independente da sociedade em que vivo. Nenhum desses elementos pode ser tomado como o produto de minha liberdade ou de minha capacidade individual de escolha. Antes, minha liberdade e capacidade são exercidas a partir do encontro com esses diversos fins e valores que me antecedem e que compõem o horizonte cultural em que existo. Antes do bem privado há um “bem comum” a partir do qual os indivíduos podem visar seus objetivos.
Partindo dessas premissas, podemos entender que a função do Estado para os comunitaristas deverá precisamente reforçar a “política do bem comum”. Sua atuação nada terá da “neutralidade” muitas vezes defendida pelos liberais. Em outras palavras, o Estado não deverá apenas assegurar que cada indivíduo possa exercer sua capacidade autodeterminação; esta capacidade não tem qualquer aplicação se não for desenvolvido o sentimento de que todos partilhamos valores comuns. O objetivo maior da ação política deve ser a promoção deste bem cultural comum, o que apenas poderá ser conseguido se for estreitado o elo entre indivíduo e comunidade. Como vemos, o comunitarismo coloca a ênfase em aspecto aparentemente negligenciado pelo pensamento liberal, vale dizer, no fato de que a existência individual não é autossuficiente do ponto de vista moral. A existência plena de um indivíduo contempla necessariamente as formas de inscrição da esfera pública. Por isso, os comunitaristas incentivam a participação dos cidadãos na vida cívica e têm uma noção mais robusta de cidadania, a qual não pode ser reduzida a mero exercício de direitos. Ser cidadão, na perspectiva comunitarista, significa atuar positivamente nas questões sociais e políticas que decidem a vida em comum. Por essa razão, os comunitaristas estão muito mais próximos do republicanismo do que os liberais.
Como não temos agora a oportunidade para explicitar em que consiste o republicanismo, fazemos somente uma indicação para encerrar nossa série de considerações acerca das relações entre indivíduo e comunidade. De maneira muito genérica, o republicanismo pode ser definido como uma perspectiva política que defende vigorosamente uma concepção ativa de cidadania. Na concepção republicana, a existência em sociedade requer a participação constante do cidadão nos afazeres cívicos e isso por uma razão muito simples: a liberdade individual apenas é garantida se o Estado em que vivemos for livre. À primeira vista, isso poderia parecer uma restrição da liberdade uma vez que está imposta uma obrigação. Mas é exatamente o contrário: trata-se de sua ampliação em uma forma de vida cujo sentido não é dado pela individualidade e sim pela inserção em um espaço público e pela afirmação do bem comum.
Problemas: 1- O comunitarismo não acabaria por ceder demais à coletividade e, assim, produzir um efeito contrário ao que deseja, isto é, em vez de levar ao reconhecimento da autodeterminação implicaria a supressão da liberdade individual? 2- O respeito à diversidade e diferença poderia ser um valor compartilhado por todos?
Conclusão:
As diversas abordagens do tema que tratamos nesses tópicos permitem compreender que a relação entre indivíduo e comunidade encontra formulações muito distintas, às vezes discrepantes, ao longo do tempo. Apesar disso, podemos identificar que na Antiguidade grega parece prevalecer uma perspectiva coletivista, isto é, a que privilegia a cultura e a tradição na determinação dos modos de vida dos indivíduos. Por outro lado, a partir do século XVI, o quadro se inverte e a reivindicação de autonomia do indivíduo sobre a comunidade parece ganhar força, sendo defendida por boa parte dos filósofos. Mas essas duas “tendências” (coletivista e individualista) não esgotam a complexidade da questão (podemos reconhecer um individualismo no contexto grego e um coletivismo na modernidade). Como quer que seja, nos dias atuais o debate está longe de ter se esgotado, polarizando mesmo boa parte da reflexão filosófica.
Bibliografia:
ARISTÓTELES. Política. Les politiques. Trad. de P. Pellegrin. Paris: Flammarion, 1993. Traduções para o português: Mário da Gama Cury.
Brasília: Editora da UNB, 1997 (3ª edição); Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BERTEN, André. Filosofia política. Trad. de Márcio Anatole de Souza Romeiro. São Paulo: Paulus, 2003.
HOBBES, Thomas. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979, Coleção Os Pensadores.
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Trad. de Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001.
MILL, John Stuart. Da liberdade. In: A liberdade/ O utilitarismo. Trad. de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PLATÃO Apologia de Sócrates. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1987, Coleção Os Pensadores.
-------- Críton. Trad. de Manuel de Oliveira Pulquério. In: Platão, Apologia de Sócrates, Críton. Lisboa: Edições 70, 2009 (2ª edição).
-------- República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001 (9ª edição).
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. Trad. de Lourdes Gomes Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Coleção Os Pensadores.
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXExercícios de Reflexão
1.1
– Quais as características do pensamento de Maquiavel em relação ao governo ou
ao Estado? Por que esse autor é considerado o pai do Estado moderno?
R: Maquiavel anuncia uma separação
fundamental para que a noção de Estado Moderno possa ser constituída, requer a
separação da religião e do Estado, e o que mais causa espanto, a separação da
ética e da política. Cria um tipo de política que o que vale é atingir os fins,
ou seja, a manutenção do poder mesmo que para isso seja necessário mentir e
dissimular. Maquiavel rompe com o que os antigos chamavam de justiça, para o
filósofo, a política não poderia ser aliada da justiça. Aqui há a separação do
que é comportamento público do que é comportamento privado.
1.2
– Quais as
características mais marcantes dos pensadores contratualistas? Quem são esses
autores e quais as principais ideias de cada um? Estabeleça uma comparação
entre a concepção por eles apresentada em relação ao governo ou Estado e o que
o pensamento antigo de Platão e Aristóteles havia produzido.
R:A característica mais marcante dos contratualistas era, como
o nome já diz, a exposição da necessidade de se manter um “contrato social”, pois separavam a
sociedade civil e o Estado. São eles: Hobbes, Locke, Rousseau, cada um com suas
especificidades, Hobbes acreditava que o estado de natureza humana era o “estado de
todos contra todos”, os seres humanos deveriam manter a vida que era seu bem
mais valioso. Na concepção de Hobbes o homem não é um ser político, o que
contradiz o pensamento de Aristóteles, que manteve a tese de que o homem seria
um ser essencialmente político. Para Hobbes para apaziguar os conflitos do
estado de natureza, seria necessário a criação do Estado ( governo) que surgiria
a partir de um pacto social ao qual fora estabelecido por seus membros e que
teria um “Leviatã”, ou seja, um tirano que mantivesse a todos sob a ordem das
leis do contrato. Locke da mesma forma que Hobbes acreditava que somente a
partir da formação de um Estado e de um
contrato social seria possível a manutenção da paz; para Locke o Estado deve
manter a ordem e a paz entre os homens, mas diferentemente de Hobbes, Locke
acreditava nas liberdades individuais e na possibilidade de ação de cada homem,
defendendo seus próprios interesses, garantindo a liberdade individual.
Rousseau ao contrário de Hobbes defendia que o homem em estado de natureza era
bom, mas a partir do convívio em sociedade se degenerou, Rousseau apresenta o
contrato social como modo de se manter a possibilidade de convívio social para
que não se perdesse a liberdade
individual. Mas de forma diferente de Locke para o qual a liberdade individual
deveria prevalecer, Rousseau acreditava que a partir do contrato social os
interesses pessoais seriam postos em segundo plano, prevalecendo a vontade do
coletivo, ou seja, a vontade geral.
1.3
- Qual a relação que o homem estabelece
(períodos antigo, medieval, renascentista, moderno e contemporâneo) com o
governo ou o Estado?
R: No período antigo o homem não
pode separar a vida pública da vida privada, participar da vida política
significava ser livre e consequentemente cidadão, aliando sempre a ética com a
política. No período medieval o homem tem uma relação ainda mantida por regras,
a vida e as regras deveriam manter uma dialética, a vida só seria digna se bem
regrada. No período moderno cria-se com Maquiavel a separação da vida pública e
privada, o homem não necessita da ética na vida pública, o Estado deve ser
aquele que garante a segurança, mas a qualquer custo, com a clivagem da ética e
da política. No período renascentista surge o interesse pela manutenção da vida
com participação política, mas não necessariamente com ética, os homens
necessitavam de garantias que os fizessem respeitar os direitos do outro, com o
contrato social surge a possibilidade de se garantir os direitos humanos. No
período contemporâneo, o que vemos é a apatia dos homens quanto às questões
políticas em relação ao outro, é perceptível o que acontece, grupos de pessoas
se juntam com a finalidade de garantir direitos individuais, como consequência
há uma cisão entre a sociedade civil e o Estado; cada um quer ser ouvido de
maneira individual, os grupos muitas vezes entram em conflito de interesses
gerando atrito, o governo costuma favorecer o que lhe é mais conveniente
naquele momento.
1.4
- Qual a contribuição da Independência dos Estados Unidos e da Revolução
Francesa para os Estados contemporâneos?
R: Os Estados modernos surgiram a partir da concepção de
República do Período Iluminista, tanto a Revolução Francesa, quanto a
Independência dos Estados Unidos foram fundamentais para o surgimento destes
Estados, a constituição passa a ser a base das leis e do modo de governo destes
Estados, sejam eles republicanos ou monárquicos, a participação política
resultando de um consenso jurídico. A formação de uma Declaração Universal dos
Direitos Humanos também foi inspirada no Período Iluminista, ( apesar deste
período não incluir todos os membros da sociedade).
Plano de Aula sobre o filme: Ladrões de Bicicletas ( 3ºs anos).
[1] O Neorrealismo italiano foi um movimento cultural surgido na Itália ao final da segunda guerra
mundial,
cujas maiores expressões ocorreram no cinema. Seus maiores expoentes foram Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino
Visconti, todos fortemente influenciados pelos filmes da escola do realismo poético
francês.
O
cinema neorrealista italiano caracterizou-se pelo uso de elementos da realidade
numa peça de ficção, aproximando-se até certo ponto, em algumas cenas, das
características do filme documentário. Ao contrário do
cinema tradicional de ficção, o neo-realismo buscou representar a realidade
social e econômica de uma época.
Dios mio :P bateu uma vontade de ficar rico.
ResponderExcluirTextinho Grande em ...
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