Carta a Meneceu
(Sobre a Felicidade)
1 - O Estudo da Filosofia
Meneceu
Que ninguém hesite
em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de
velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar
a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não
chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou, ou que
já passou a hora de ser feliz.
Desse modo, a
filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo
sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram,
e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é
necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que,
estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.
Pratica e cultiva
então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles
constituem os elementos fundamentais para uma vida feliz.
2 - Os Deuses
Em primeiro lugar,
considerando a divindade como um ente imortal e bem aventurado, como sugere a
percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com
a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela
tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.
Os deuses de fato
existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz
a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a
noção que têm dos deuses. Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria
crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria.
Com efeito, os
juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em
opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus
e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só
aceitam a convivência com seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente
deles.
3 - A Morte
Acostuma-te à ideia
de que a morte para nós não é nada, visto que todo o bem e todo o mal residem
nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência
clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida
efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de
imortalidade.
Não existe nada de
terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de
terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não
porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera:
aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está
sendo esperado.
Então, o mais
terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente
porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando
a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem
para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo
que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da
morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da
vida.
O sábio, porém, nem
desdenha viver, nem teme deixar de viver; viver não é um fardo e não-viver não
é um mal.
4 - Saber Viver
Assim como opta pela
comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os
doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.
Quem aconselha o
jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que
a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o
mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer.
Mas pior ainda é
aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas uma vez nascido, transpor o mais
depressa possível as portas do Hades.
Se ele diz isso com
plena convicção, por que não vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for
esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi frívolo em falar
de coisas que brincadeira não admitem.
Nunca devemos nos
esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso,
para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a
certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.
5 - Os Desejos e a Tranquilidade de Espírito
Consideremos também
que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os
naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os
necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o
bem estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro
dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo
e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz:
em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor
e do medo.
Uma vez que tenhamos
atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não
tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser
o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do
prazer quando sofremos sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa
necessidade não se faz sentir.
6 - O Prazer
É por essa razão que
afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz.
Com efeito, nós o
identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele
praticamos toda escolha ou recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo
com a distinção entre prazer e dor.
Embora o prazer seja
nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há
ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles advêm efeitos o mais das
vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis
aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por
muito tempo.
Portanto, todo
prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos
são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser
evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com
o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem
como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.
7 - A Simplicidade
Consideramos ainda a
autos suficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas
para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente
convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela;
tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.
Os alimentos mais
simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que
se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais
profundo quando ingeridos por quem deles necessita.
Habituar-se às
coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente
para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente
as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência
rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar
sem temor as vicissitudes da sorte.
8 - A Temperança e a Prudência
Quando então dizemos
que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes
ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que
ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente,
mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma.
Não são, pois,
bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor
dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida,
mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda
rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa
perturbação toma conta dos espíritos.
De todas essas
coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais
preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes;
é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça,
e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade.
Porque as virtudes
estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas.
9 - O Homem Sábio
Na tua opinião, será
que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente
acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a
morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem
supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco,
ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como
o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso,
ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso, instável,
enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o
louvor?
Mais vale aceitar o
mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo
menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que
lhes prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.
Entendendo que a
sorte não é uma divindade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus
não faz nada ao acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione
aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz,
mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A
seu ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na
prática, é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que chegue a
ter êxito um projeto mau.
10 – Meditação
Medita, pois, todas
essas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e
com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer
dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente
a um mortal o homem que vive entre bens imortais.
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