domingo, 10 de setembro de 2017

Immanuel Kant e o Imperativo Categórico.



Natureza humana e dever
O cristianismo introduz a ideia do dever para resolver um problema ético, qual seja, oferecer um caminho seguro para nossa vontade, que, sendo livre, mas fraca, sente-se dividida entre o bem e o mal. No entanto, essa ideia cria um problema novo. Se o sujeito moral é aquele que encontra em sua consciência (vontade, razão, coração) as normas da conduta virtuosa, submetendo-se apenas ao bem, jamais submetendo-se a poderes externos à consciência, como falar em comportamento ético por dever? Este não seria o poder externo de uma vontade externa (Deus), que nos domina e nos impõe suas leis, forçando-nos a agir em conformidade com regras vindas de fora de nossa consciência?
Em outras palavras, se a ética exige um sujeito autônomo, a ideia de dever não introduziria a heteronomia, isto é, o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós?
Um dos filósofos que procuraram resolver essa dificuldade foi Rousseau, no século XVIII. Para ele, a consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são “a voz da Natureza” e o “dedo de Deus” em nossos corações. Nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de benevolência para com os outros. Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e destrutivos.
O dever simplesmente nos força a recordar nossa natureza originária e, portanto, só em aparência é imposição exterior. Obedecendo ao dever (à lei divina inscrita em nosso coração), estamos obedecendo a nós mesmos, aos nossos sentimentos e às nossas emoções e não à nossa razão, pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa. Uma outra resposta, também no final do século XVIII, foi trazida por Kant. Opondo-se à “moral do coração” de Rousseau, Kant volta a afirmar o papel da razão na ética. Não existe bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.
A exposição kantiana parte de duas distinções:
1. a distinção entre razão pura teórica ou especulativa e razão pura prática;
2. a distinção entre ação por causalidade ou necessidade e ação por finalidade ou liberdade.
Razão pura teórica e prática são universais, isto é, as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares – podem variar no tempo e no espaço os conteúdos dos conhecimentos e das ações, mas as formas da atividade racional de conhecimento e da ação são universais. Em outras palavras, o sujeito, em ambas, é sujeito transcendental, como vimos na teoria do conhecimento. A diferença entre razão teórica e prática encontra-se em seus objetos. A razão teórica ou especulativa tem como matéria ou conteúdo a realidade exterior a nós, um sistema de objetos que opera segundo leis necessárias de causa e efeito, independentes de nossa intervenção; a razão prática não contempla uma causalidade externa necessária, mas cria sua própria realidade, na qual se exerce.
Essa diferença decorre da distinção entre necessidade e finalidade/liberdade.
A Natureza é o reino da necessidade, isto é, de acontecimentos regidos por sequências necessárias de causa e efeito – é o reino da física, da astronomia, da química, da psicologia. Diferentemente do reino da Natureza, há o reino humano da práxis, no qual as ações são realizadas racionalmente não por necessidade causal, mas por finalidade e liberdade.
A razão prática é a liberdade como instauração de normas e fins éticos. Se a razão prática tem o poder para criar normas e fins morais, tem também o poder para impô-los a si mesma. Essa imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o dever. Este, portanto, longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade e à nossa consciência, é a expressão da lei moral em nós, manifestação mais alta da humanidade em nós. Obedecê-lo é obedecer a si mesmo. Por dever, damos a nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral e por isso somos autônomos.
Resta, porém, uma questão: se somos racionais e livres, por que valores, fins e leis morais não são espontâneos em nós, mas precisam assumir a forma do dever?
Responde Kant: porque não somos seres morais apenas. Também somos seres naturais, submetidos à causalidade necessária da Natureza. Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites, impulsos, desejos e paixões. Nossos sentimentos, nossas emoções e nossos comportamentos são a parte da Natureza em nós, exercendo domínio sobre nós, submetendo-se à causalidade natural inexorável. Quem se submete a eles não pode possuir a autonomia ética.
A Natureza nos impele a agir por interesse. Este é a forma natural do egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o que desejamos. Além disso, o interesse nos faz viver na ilusão de que somos livres e racionais por realizarmos ações que julgamos terem sido decididas livremente por nós, quando, na verdade, são um impulso cego determinado pela causalidade natural. Agir por interesse é agir determinado por motivações físicas, psíquicas, vitais, à maneira dos animais.
Visto que apetites, impulsos, desejos, tendências, comportamentos naturais costumam ser muito mais fortes do que a razão, a razão prática e a verdadeira liberdade precisam dobrar nossa parte natural e impor-nos nosso ser moral. Elas  o fazem obrigando-nos a passar das motivações do interesse para o dever. Para sermos livres, precisamos ser obrigados pelo dever de sermos livres.
Assim, à pergunta que fizemos no capítulo anterior sobre o perigo da educação ética ser violência contra nossa natureza espontaneamente passional, Kant responderá que, pelo contrário, a violência estará em não compreendermos nossa destinação racional e em confundirmos nossa liberdade com a satisfação irracional de todos os nossos apetites e impulsos. O dever revela nossa verdadeira natureza.
O dever, afirma Kant, não se apresenta através de um conjunto de conteúdos fixos, que definiriam a essência de cada virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em cada circunstância de nossas vidas. O dever não é um catálogo de virtudes nem uma lista de “faça isto” e “não faça aquilo”. O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral.
Essa forma não é indicativa, mas imperativa. O imperativo não admite hipóteses (“se... então ”) nem condições que o fariam valer em certas situações e não valer em outras, mas vale incondicionalmente e sem exceções para todas as circunstâncias de todas as ações morais. Por isso, o dever é um imperativo categórico. Ordena incondicionalmente. Não é uma motivação psicológica, mas a lei moral interior.
O imperativo categórico exprime-se numa fórmula geral: Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal. Em outras palavras, o ato moral é aquele que se realiza como acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesmo.
Essa fórmula permite a Kant deduzir as três máximas morais que exprimem a incondicionalidade dos atos realizados por dever. São elas:
1. Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza;
2. Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio;
3. Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.

A primeira máxima afirma a universalidade da conduta ética, isto é, aquilo que todo e qualquer ser humano racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionável, válida para todos e em todo tempo e lugar. A ação por dever é uma lei moral para o agente.
A segunda máxima afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas e, portanto, a exigência de que sejam tratados como fim da ação e jamais como meio ou como instrumento para nossos interesses.
A terceira máxima afirma que a vontade que age por dever institui um reino humano de seres morais porque racionais e, portanto, dotados de uma vontade legisladora livre ou autônoma. A terceira máxima exprime a diferença ou separação entre o reino natural das causas e o reino humano dos fins.
O imperativo categórico não enuncia o conteúdo particular de uma ação, mas a forma geral das ações morais. As máximas deixam clara a interiorização do dever, pois este nasce da razão e da vontade legisladora universal do agente moral. O acordo entre vontade e dever é o que Kant designa como vontade boa que quer o bem.
O motivo moral da vontade boa é agir por dever. O móvel moral da vontade boa é o respeito pelo dever, produzido em nós pela razão. Obediência à lei moral, respeito pelo dever e pelos outros constituem a bondade da vontade ética.
O imperativo categórico não nos diz para sermos honestos, oferecendo-nos a essência da honestidade; nem para sermos justos, verazes, generosos ou corajosos a partir da definição da essência da justiça, da verdade, da generosidade ou da coragem. Não nos diz para praticarmos esta ou aquela ação determinada, mas nos diz para sermos éticos cumprindo o dever (as três máximas morais). É este que determina por que uma ação moral deverá ser sempre honesta, justa, veraz, generosa ou corajosa. Ao agir, devemos indagar se nossa ação está em conformidade com os fins morais, isto é, com as máximas do dever.
Por que, por exemplo, mentir é imoral? Porque o mentiroso transgride as três máximas morais. Ao mentir, não respeita em sua pessoa e na do outro a humanidade (consciência, racionalidade e liberdade), pratica uma violência escondendo de um outro ser humano uma informação verdadeira e, por meio do engano, usa a boa-fé do outro. Também não respeita a segunda máxima, pois se a mentira pudesse universalizar-se, o gênero humano deveria abdicar da razão e do conhecimento, da reflexão e da crítica, da capacidade para deliberar e escolher, vivendo na mais completa ignorância, no erro e na ilusão.
Por que um político corrupto é imoral? Porque transgride as três máximas. Por que o homicídio é imoral? Porque transgride as três máximas.

As respostas de Rousseau e Kant, embora diferentes, procuram resolver a mesma dificuldade, qual seja, explicar por que o dever e a liberdade da consciência moral são inseparáveis e compatíveis. A solução de ambos consiste em colocar o dever em nosso interior, desfazendo a impressão de que ele nos seria imposto de fora por uma vontade estranha à nossa.

sábado, 9 de setembro de 2017

A TEORIA ÉTICA UTILITARISTA

Segundos Anos




TEORIA ÉTICA CONSEQUENCIALISTA
 As consequências de uma ação é que determinam se é moralmente correta ou incorreta.

TEORIA ÉTICA HEDONISTA

Todas as atividades humanas têm um objetivo último, isto é, são meios para uma finalidade que é o ponto de convergência de todas. Esse fim é a felicidade ou bem-estar. Mais propriamente procuramos em todas as atividades a que nos dedicamos viver experiências aprazíveis e evitar experiências dolorosas ou desagradáveis. Esta perspectiva que identifica a felicidade com o prazer ou o bem-estar tem o nome de hedonismo. Mas trata – se da felicidade geral e não da individual.

O CRITÉRIO DA MORALIDADE DE UMA AÇÃO

Segundo Mill a utilidade é o que torna uma ação moralmente valiosa. O critério da moralidade de um ato é o princípio de utilidade. Este princípio é o teste da moralidade das ações. Uma ação deve ser realizada se e só se dela resultar a máxima felicidade possível para as pessoas ou as partes que por ela são afetadas. O princípio de utilidade é por isso conhecido também como princípio da maior felicidade. A ideia central do utilitarismo é a de que devemos agir de modo a que da nossa ação resulte a maior felicidade ou bem - estar possível para as pessoas por ela afetadas. Uma ação boa é a que é mais útil, ou seja, a que produz mais felicidade global ou, dadas as circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é possível produzir felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a infelicidade. Costuma-se resumir o princípio de utilidade mediante a fórmula «A maior felicidade para o maior número». Esta fórmula foi cunhada por Francis Hutchinson e não aparece tal e qual nos escritos de Mill.


MORALMENTE INCORRETO ou MORALMENTE CORRETO

Ação moralmente incorreta

A ação que tem más consequências ou dadas as circunstâncias piores consequências do que ações alternativas.

O que é uma ação com más consequências?

- Ação cujos resultados não contribuem para um aumento da felicidade (bem – estar) ou diminuição da infelicidade do maior número possível de pessoas por ela afetadas.

- Ação egoísta em que a felicidade do maior número não é tida em conta ou em que só o meu bem – estar ou satisfação é procurado.

- Ação que não se subordina ao princípio de utilidade.


Ação moralmente correta

A ação que tem boas consequências ou dadas as circunstâncias melhores consequências do que ações alternativas.

O que é uma ação com boas consequências?

-Ação cujos resultados contribuem para um aumento da felicidade (bem – estar) ou diminuição da infelicidade do maior número possível de pessoas por ela afetadas.

- Ação subordinada ao princípio de utilidade.


NÃO HÁ DEVERES ABSOLUTOS

Para o utilitarista as ações são moralmente corretas ou incorretas conforme as consequências: se promovem imparcialmente o bem-estar são boas. Isto quer dizer que não há ações intrinsecamente boas. Só as consequências as tornam boas ou más. Assim sendo, não há, para o utilitarista, deveres que devam ser respeitados sempre e em todas as circunstâncias. Se para a ética kantiana, alguns atos como matar, roubar ou mentir são absolutamente proibidos mesmo que as consequências sejam boas, para Mill justifica-se, por vezes, matar, deixar morrer, roubar ou mentir.


O PRINCÍPIO DE UTILIDADE E AS NORMAS MORAIS VIGENTES


As normas morais comuns estão em vigor em muitas sociedades por alguma razão. Resistiram à prova do tempo e em muitas situações fazemos bem em segui-las nas nossas decisões. Contudo, não devem ser seguidas cegamente. Nas nossas decisões morais devemos ser guiados pelo princípio de utilidade e não pelas normas ou convenções socialmente estabelecidas. Dizer a verdade é um ato normalmente mais útil do que prejudicial e por isso a norma «Não deves mentir» sobreviveu ao teste do tempo. Segui-la é respeitar a experiência de séculos da humanidade. Mas há situações como em que não respeitar absolutamente uma determinada norma moral e seguir o princípio de utilidade terá melhores consequências globais do que respeitá–la.


FELICIDADE GERAL E FELICIDADE INDIVIDUAL


A minha felicidade não é mais importante do que a felicidade dos outros. O utilitarismo de Mill não defende que tenhamos de renunciar à nossa felicidade, a uma vida pessoal em nome da felicidade do maior número. Trata-se através da educação segundo o princípio de utilidade de abrir um espaço amplo para que a inclinação para o bem geral se sobreponha com frequência cada vez maior ao egoísmo. O princípio da maior felicidade em Mill exige que cada indivíduo se habitue a não separar a sua felicidade da felicidade geral sem deixar de ter projetos, interesses e vida pessoal.


UM EXEMPLO ILUSTRATIVO DA TEORIA ÉTICA DE MILL


Imagine que um grupo de terroristas se apodera de um avião em Berlim. Os seus passageiros e tripulantes ficam reféns. Contudo, os terroristas propõem libertá-los se um cidadão local que eles consideram envolvido em atividades antiterroristas lhes for entregue para ser morto. Se as autoridades da cidade não colaborarem no prazo de quatro horas ameaçam fazer explodir o aparelho com todas as pessoas lá dentro. As autoridades locais sabem que o cidadão em causa não cometeu o menor crime durante a sua vida e que os terroristas estão enganados, pois não participou na morte de membros do grupo que agora dele se quer vingar. Não obstante, sabem que será vã a tentativa de convencer os terroristas de que estão enganados. Após longa deliberação decidem entregar o referido cidadão aos terroristas que libertam os reféns e matam quem queriam matar.


Posição de Mill
Ação moralmente correta


Justificação

Há que ter em conta a ação que produziria mais felicidade global. O que produz mais infelicidade? Deixar morrer um inocente ou deixar eventualmente morrer dezenas de inocentes? Quantas famílias não ficariam enlutadas caso não se cedesse às pretensões dos terroristas? Para Mill justifica-se, por vezes, matar, deixar morrer, roubar ou mentir. Nenhum desses atos é intrinsecamente errado e, por isso, os deveres que proíbem a sua realização não devem ser considerados absolutos. Deve notar – se que estamos a referir – nos a um caso dramático em que as alternativas –  permitir a morte de um ou permitir a morte de muitos – são ambas repugnantes. Mas há que optar e, segundo Mill, seguir um princípio como cumpre o dever é vago.