sexta-feira, 22 de abril de 2016

A existência ética

Senso moral e consciência moral

Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral. 

Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição, vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral

Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imitá- la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral. 

Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacinas de seres humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às custas da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos manifestam nosso senso moral

Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida, com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê- lo? Que fazer? Qual a ação correta?

(...) Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo?

(...) Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio? Que fazer?

(...) Situações como essas – mais dramáticas ou menos dramáticas – surgem sempre em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam apenas nosso senso moral, mas também põem à prova nossa consciência moral, pois exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas, porque somos responsáveis por nossas opções.

Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros.

O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva.

Juízo de fato e de valor
Se dissermos: “Está chovendo”, estaremos enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato. Se, porém, falarmos: “A chuva é boa para as plantas” ou “A chuva é bela”, estaremos interpretando e avaliando o acontecimento. Nesse caso, proferimos um juízo de valor.

Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são. Em nossa vida cotidiana, mas também na metafísica e nas ciências, os juízos de fato estão presentes. Diferentemente deles, os juízos de valor - avaliações sobre coisas, pessoas e situações - são proferidos na moral, nas artes, na política, na religião.

Juízos de valor avaliam coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus, desejáveis ou indesejáveis. Os juízos éticos de valor são também normativos, isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto.
Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade. Enunciam também que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral.

Como se pode observar, senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida cultural, uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e negativos que devem respeitar ou detestar.

Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos? A diferença entre a Natureza e a Cultura. A primeira, como vimos, é constituída por estruturas e processos necessários, que existem em si e por si mesmos, independentemente de nós: a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos necessários podemos constatar e explicar.

Por sua vez, a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam a si mesmos e suas relações com a Natureza, acrescentando-lhe sentidos novos, intervindo nela, alterando-a através do trabalho e da técnica, dando-lhe valores. Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos com a Natureza, através da agricultura. Considerar a chuva bela pressupõe uma relação valorativa dos humanos com a Natureza, percebida como objeto de contemplação.

Freqüentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do senso moral e da consciência moral, porque somos educados (cultivados) para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los. A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.

CHAUI, Marilena. Convite à  Filosofia. 567p.  2013 .http:/
/proenem.sites.ufms.br/wp-content/blogs.dir/64/files/2013/03/Convite-Filosofia-Marilena-Chaui.pdf

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