domingo, 28 de agosto de 2016

Estado de Natureza, contrato social, Estado Civil



O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as principais concepções do Estado de Natureza:
1. a concepção de Hobbes (no século XVII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou “o homem lobo do homem”. Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar;
2. a concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.
O Estado de Natureza de Hobbes e o Estado de Sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.
A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania.
Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém                   pode tirar o que não deu” – e a Lei Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo ” – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social.
Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito à vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.
A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contrato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro; e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los.
Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado.
A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade. A ideia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, compartilhando os mesmos bens, as mesmas crenças e ideias, os mesmos costumes e possuindo um destino comum. A ideia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário, tornarem se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A comunidade é a ideia de uma coletividade natural ou divina; a sociedade, a de uma coletividade voluntária, histórica e humana.
A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano.
Feito o pacto ou o contrato, os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada dos governados.
Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contratos econômicos, isto é, a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento civil, a legislação sobre a herança, etc.).
Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta.
Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembleia democrática. O fundamental não é o número de governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano  foi criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens.
Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral coletiva livre e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil; aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis.
A teoria liberal
No pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.
De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.
Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho.
Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito                                                                                                         natural?
Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto.
Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do  homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural.
O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade.
Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade.
O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.
Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?
A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:
1. por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a ideia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;
2. visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercala-se uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder  instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os  conflitos da sociedade civil;
3. o Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.
Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de           1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.
Liberalismo e fim do Antigo Regime
As ideias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos reis, derivadas da concepção teocrática do poder.
O liberalismo consolida-se com os acontecimentos de 1789, na França, isto é, com a Revolução Francesa, que derrubou o Antigo Regime.
Antigo, em primeiro lugar, porque politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em segundo lugar, porque socialmente fundado na ideia de hierarquia divina, natural e social e na organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao senhor.
Com as ideias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil (relações entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a ideia de hierarquia.
Com a ideia de contrato social (passagem da ideia de pacto de submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais) quebra-se a ideia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante.
O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito natural dos indivíduos, desfazendo a imagem do rei como marido da terra, senhor dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada, ou é estatal e pública, jamais patrimônio pessoal do monarca. O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é tomada por um parlamento – o poder legislativo -, constituído pelos representantes dos proprietários privados.
As teorias políticas liberais afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os contratantes cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida, liberdade e propriedade). O indivíduo é o cidadão.
Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política, a sociedade civil organizada, onde proprietários privados e trabalhadores criam suas organizações de classes, realizam contratos, disputam interesses e posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade.
Afirmam o caráter republicano do poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder judiciário, os representantes devendo ser eleitos por seus pares.
Quanto ao poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei está submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuírem uma  certa renda ou riqueza.
O Estado, através da lei e da força, tem o poder para dominar – exigir obediência – e para reprimir – punir o que a lei defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem pública, tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes.
A cidadania liberal
O Estado liberal se apresenta como república representativa constituída de três   poderes: o executivo (encarregado da administração dos negócios e serviços públicos), o legislativo (parlamento encarregado de instituir as leis) e o judiciário (magistraturas de profissionais do direito, encarregados de aplicar as leis). Possui um corpo de militares profissionais que formam as forças armadas – exército e polícia -, encarregadas da ordem interna e da defesa (ou ataque) externo. Possui também um corpo de servidores ou funcionários públicos, que formam a burocracia, encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os cidadãos.
O Estado liberal julgava inconcebível que um não proprietário pudesse ocupar um cargo de representante num dos três poderes. Ao afirmar que os cidadãos eram os homens livres e independentes, queriam dizer com isso que eram dependentes e não livres os que não possuíssem propriedade privada. Estavam excluídos do poder político, portanto, os trabalhadores e as mulheres, isto é, a maioria da sociedade.
Lutas populares intensas, desde o século XVIII até nossos dias, forçaram o Estado liberal a tornar-se uma democracia representativa, ampliando a cidadania política. Com exceção dos Estados Unidos, onde os trabalhadores brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII, nos demais países a cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir completamente no século XX, como conclusão de um longo processo em que a cidadania foi sendo concedida por etapas.
Não menos espantoso é o fato de que em duas das maiores potências mundiais, Inglaterra e França, as mulheres só alcançaram plena cidadania em 1946, após a Segunda Guerra Mundial. Pode-se avaliar como foi dura, penosa e lenta essa conquista popular, considerando-se que, por exemplo, os negros do sul dos Estados Unidos só se tornaram cidadãos nos anos 60 do século passado. Também é importante lembrar que em países da América Latina, sob a democracia liberal, os índios ficaram excluídos da cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994. As lutas indígenas, em nosso continente, e as africanas continuam até nossos dias .

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000, p. 517. .http://home.ufam.edu.br/andersonlfc/Economia_Etica/Convite%20%20Filosofia%20-%20Marilena%20Chaui.pdf . Acesso 28/08/2016.